24.10.13

RIO POTY, William Melo Soares




Meninos passarinham
em arvoredos
mansas águas do Poty
banham meu corpo
O poeta
passa o tempo
e a vida a limpo



William Melo Soares
em Presença da literatura piauiense 
Luiz Romero Lima (org.)
Teresina: 2003

RUA DOS MENINOS, William Melo Soares




Ventos de maio
Pipas no ar
cerol na linha da emoção.
Deixe o menino correr
o risco de ser feliz.



William Melo Soares
em Presença da literatura piauiense 
Luiz Romero Lima (org.)
Teresina: 2003

TERESINA, William Melo Soares




Os meninos da lucaia
cedo aprendiam a nadar
quem não engolia piaba
não levava boa sorte
se perdia nos remansos se abraçava com a morte

Os meninos da lucaia, baixa do chicão, cajueiro
eram malinos, afoitos, aventureiros
brincavam de pega-pega
na correnteza do rio
no movimento das águas
heróis errantes
o coração feito de pássaro
voando no horizonte



William Melo Soares
em Congresso das Águas
Teresina, 1998

RUA ABAIXO LUA ACIMA, William Melo Soares




Caso você me siga
rua abaixo
lua acima
percorra toda a cidade
entre becos e esquinas
procure um rastro de estrela
no céu de Teresina

Caso você siga
rio abaixo
lua acima
passe pelo cais do rio
de um vapor que evaporou
pro remanso de outras águas
deixando ondas no peito
do Mano Velho barqueiro

Caso você siga
lua acima
rio abaixo
no movimento das barcas
me envolva num abraço
só não toque no meu manto
de solidão e cansaço



William Melo Soares
em Presença da Literatura Piauiense 
Luiz Romero Lima (org.)
Teresina: 2003

CANELEIRO, William Melo Soares




Cheiro de frutas
passarinho nos quintais
flor da chapada
nos confins do coração.
Eu finco aqui
minha raiz de caneleiro.



William Melo Soares
em Presença da Literatura Piauiense 
Luiz Romero Lima (org.)
Teresina: 2003

MADRUGADA ADENTRO, William Melo Soares




E você chega assim
desse jeito
abrindo veredas no meu coração

- eu continuo andando nas ruas
com meus passos lentos
madrugada adentro
meu olhar atento
arrastando alguns anos de solidão
Um gole aqui
um gole ali
um poema brilhando no peito
E você chega assim
desse jeito
abrindo
invadindo
acendendo uma chama no meu coração



William Melo Soares
em Anos 70 - Por que essa lâmina nas palavras?
José Pereira Bezerra 
Teresina: 1993

RIO POTY II, William Melo Soares




desce o rio
margeando
o plantio das vazantes
alimentando 
em seu leito
essa gente ribeirinha
segue o rio
vida aflora
pela nadança 
dos peixes



William Melo Soares
em Estado de Garça 
Teresina: 2011

William Melo Soares - síntese biográfica




William Melo Soares [1953] nasceu em Alto Longá - PI. Poeta. Tem várias composições gravadas. Foi coordenador do movimento cultural Livro nas Escolas. É conhecido como nosso "poetinha". Um trabalhador e divulgador incansável da poesia. Bibliografia: Ponta de rua (obra coletiva, 1978); Roendo os ossos do ofício (1987); Com licença da palavra (1986); Topada (1992); Passo a pássaro (co-autoria com Graça Vilhena, 1992); Congresso das águas (1998). Foi incluído no livro: A poesia piauiense do sec. XX (org. Assis Brasil - 1995).

22.10.13

AVIÃO




- Paizinho, me conta uma história.

- Era uma vez um doido muito bacana chamado Avião.

- Avião por quê?

- Ele vivia imitando barulho de avião. Assim: ãoãoão. E, com o braço, fazia acrobáticas piruetas, como se fosse um de verdade.

- Que legal! Que mais ele fazia?

- Ah, gostava de distribuir brinquedos para as crianças.

- Um Papai-Noel?

- Sim, o mais bondoso e simpático que já existiu.

- Você ganhou presentes dele?

- Muitos. Ele andava com um jacá cheio de brinquedo. Quando apontava na esquina da Lindolfo Monteiro, desembestávamos alegres para abraçá-lo. Recebia-nos sempre com um sorriso enorme no rosto. Era o mais feliz de nós todos.

- O que ele dava pra você?

- Bola, revólver, pião, carro, peteca...

- E as meninas não ganhavam nada?

- Claro, elas recebiam boneca, pulseira, casinhas para montar...

- Como ele conseguia todos esses brinquedos?

- Comerciantes do Mercado Velho e redondezas davam para ele.

- Por quê?

- Gostavam dele. Também se não dessem, ele pegava assim mesmo.

- Ele seria capaz disso?

- Claro, o Avião era capaz de tudo para ver uma criança feliz.

- Conta mais sobre ele, paizinho.

- Ele vivia pulando o rio Parnaíba da ponte metálica.

- Não acredito!

- Era sim. Ele dizia ser o Tarzan. Botava uma faca na boca e jogava uma boneca no rio. em seguida, batendo nos peitos e dando aqueles gritos, saltava para salvá-la.

- Que corajoso! Ele não tinha medo de morrer afogado?

- Não, salvar a jovem em apuros era o mais importante.

- Você não falou que era uma boneca?

- Falei sim. Mas para ele, que se achava Tarzan, ela era uma garota que precisava de ajuda. Afinal, para que servem os heróis?

- É mesmo! Agora sei por que você fala tanto nele.

- Ele era meu herói preferido.

- Mas por que você está chorando, paizinho?

- Porque ele traz de volta toda minha infância. Ele era para nós, garotos da Clodoaldo Freitas, uma pessoa muito especial.

- Não é melhor, paizinho, você dormir comigo esta noite?



Wellington Soares
em Por um triz
Teresina: Fundação Quixote, 2007

O SUCO DO ABRAHÃO, por Wellington Soares





Quando criança, minha obrigação semanal era ir à novena com dona Mundica, ali na Vila Operária, zona norte de Teresina. Toda terça-feira, se a memória não me trai, estava eu lá, cercado de santos e anjos, aprendendo que melhor do que os pecados cometidos é a sensação de leveza do perdão alcançado. Em troca, exigia apenas algumas moedas para comprar uns picolés Amazonas e uns poucos alfinins, chantagem aceita e cumprida rigorosamente por mamãe, mas só atendida após a celebração religiosa. Com o espírito confortado e o corpo alegre, retornava feliz para casa, saboreando cada um daqueles momentos com incontido prazer. Já deitado na rede, pensava, mesmo não conhecendo ainda Bandeira, que a noite podia descer, a noite com os seus sortilégios.

Agora, sem compromisso e por vontade própria, troquei as novenas de outrora pelos refrescos deliciosos do mestre Abrahão, situado nas proximidades do Instituto de Educação. Toda semana apareço lá, como um montão de gente também, para assinar o ponto: tomar um refresco - que de tão espesso parece mais um suco - e comer um pastelzinho caseiro. Dos sabores, prefiro os de cajá e bacuri, sem igual e que nos levam aos céus. O de abacate é bom nem falar, covardia pura, o negócio é tomar aos poucos e devagarinho, lambendo os beiços e pedindo mais outro. Para quem está resfriado, ou precisando de um reforço no estoque de vitamina C, a casa prepara um suco de laranja no capricho, feito ali na presença do freguês, com mel de italiana usado como açúcar. Na hora do prejuízo, depois de ter enchido a pança, é quem vem a parte melhor de tudo: uns nadinha de reais, um ou dois, com direito a troco ainda, "muito obrigado" e "volte sempre".

E não é que volto mesmo!?, na primeira distração das pelejas do trabalho, estou lá novamente, esperando a vez de ser atendido, não só para saborear os refrescos, mas, sobretudo, as palavras de sabedoria do mestre da Rui Barbosa com a Manuel Domingos. Com a invejável experiência de vida que tem, ele nos serve gratuitamente, apesar da pouca escolaridade, lições importantes de humildade, dedicação e amor ao próximo. Através de cartazes afixados nas paredes do comércio, Abrahão da Silva Gama - o popular ASIGA -, este maranhense de São João dos Patos que reside em Teresina há mais de cinquenta anos, planta nas retinas das pessoas mensagens perturbadoras e educativas, difíceis de esquecer pelo humor sarcástico e engraçado que destilam: "Prove que é orelhudo, preferindo um refrigerante de 1 real e renunciando a um suco por apenas 75 centavos". Ou, então, aquela dirigida aos que têm a mania de consumir sem querer pagar, tentando sair de fininho e sem dar na vista: "Pagar antes está na moda e virou samba! Siga o ritmo e receba nosso agradecimentos".

O mais impressionante, acreditem, é que os preços e a qualidade permanecem, ao longo dos anos, quase sempre os mesmos, um tantinho de nada e uma gostosura que só provando. Com ou sem crise econômica, a clientela festeja e solta foguetes. Todos entram e saem dali com a barriga contente e o bolso satisfeito. Um ambiente, aliás, bonito de se ver e estar, com as mais distintas classes e raças harmonizadas pela fome de comida e saber, instante sublime porque guarda algo de misterioso e primitivo. A imagem comovente de homens e mulheres unidos em torno do sagrado alimento da caça e das reflexões existenciais, que os fortaleciam enquanto comunidade ávida de desbravar as naturezas em geral, sem as distinções ainda absurdas e inaceitáveis que surgiram depois.

Sempre que converso com Seo Abrahão, a quem chamo respeitosamente de mestre, me vêm à lembrança os versos antológicos de Bertold Brecht, nos quais o poeta e dramaturgo alemão exalta os que transformam a vida em uma permanente e apaixonada luta, não só no campo político como em qualquer atividade abraçada com amor e determinação: "Há aqueles que lutam um dia, e por isso são bons; / Há aqueles que lutam muitos dias, e por isso são muito bons; / Há aqueles que lutam anos, e são melhores ainda; / Porém há aqueles que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis". O mestre Abrahão pertence, sem dúvida e na opinião de todos que o conhecem, ao seleto grupo dos que foram escolhidos e vieram com a nobre missão de serem imprescindíveis. Ainda bem que - para nossa eterna e grata felicidade - ele desembarcou por essas bandas da Chapada do Corisco, e acabou se tornando um dos nossos mais queridos e legítimos filhos.



Wellington Soares
Por um triz 
Teresina: Fundação Quixote, 2007

EU, TERESINA E ELE, Wellington Soares


Há seis meses namorávamos e nada. Ao contrário dos outros, bolinar comigo não queria. Como um pedaço de descaminho, no dizer dos rapazes, chateada fiquei. Valfrido, esse era o seu nome, nem aí. Sua estranheza me prendia cada vez mais a ele. Que o amava, não tinha dúvidas, mas não podia continuar subindo pelas paredes.

- Transar comigo, por que você evita?
- Só cai no chão, a manga, quando está madura.
- Tanto tempo assim, como posso?
- Pela bela serrana, Jacó muitos anos esperou.
- Mas eu o amo.
- Amar é saber, no momento exato, tirar o cílio do olho.
- Quando, então?
- De Teresina se embriagar e se despir com pureza.

Com o coração aberto, deixei me levar por suas mãos seguras e macias, descortinando outros horizontes. De barco, o Velho Monge atravessamos para Timon, cruzando com pescadores de redes vazias. Na volta, um suco delicioso no Abraão, tendo como troco palavras de estímulo. À tardinha, um faroeste no Rex, balas de horror raspando minha cabeça. Maria da Inglaterra e seu Peru Rodou, no Clube dos Diários, a noitada fechando, o sabor de cerveja nas bocas geladas.

Acordada cedinho, um café reforçado na Piçarra, ânimo para encarar a arte misteriosa de seduzir. No troca-troca, sob um escaldante sol, o comércio de tudo, menos o do amor, inegociável. O gostoso cheiro da panelada, nunca provada no Mercado Velho, no meu estômago faz alegria. O restante da tarde, navegamos na beleza do encontro dos rios, onde deixei claro ao Cabeça de Cuia não me chamar Maria e muito menos virgem. De bicicleta, à noite, vários bairros da cidade percorremos. Na despedida, sem esperar, ouvi:

- Amanhã, esteja pronta, será o dia.
- Onde? A que horas?
- Dezesseis, na praça da Bandeira, sem atraso.
- Vou de carro?
- Não, sem nada, só você. De lá partimos.
- Que mais?
- Relógio sem ponteiros.

Noite em parafuso, sem conseguir os olhos pregar. A espera, alfinete ferindo o corpo, compensa? Do ônibus, descemos em frente ao motelzinho, mãos coladas e a galope os desejos.

Depois dali, mesmo com os apelos dos velhos, nunca mais retornei, nem fui em casa pegar nada. Ele me bastava. Era, sem exagero, uma pessoa muito especial. Que outro homem, diga, me levaria a conhecer e a amar Teresina? Comendo estas piabas fritas agora, nas coroas do Parnaíba, tendo-o ao meu lado, a vida passa a ter sentido.


Wellington Soares
em Maçã Profanada
Teresina: 2003

Wellington Soares - síntese biográfica




Wellington Soares nasceu em Teresina - PI. Contista e professor. Durante muitos anos organizou o SALIPI (Salão do Livro do Piauí) e atualmente edita a revista de arte e cultura Revestrés. Tem publicado: Linguagem dos sentidos; Maça Profanada; Por um triz; Um beijo na bunda; O dia em que quase namorei a Xuxa.

BIBELÔ, Elias Paz e Silva


bibelô
o brinquedo preferido
das crianças e velhos

travestido de mulher
resmungar maneiro
o alvo predileto das pedras e insultos

bibelô
um homensério
que o amor corrompeu
antes mesmo dos rapazes alegres
já era a graciosa das ruas

ENIGMA NO AR, Elias Paz e Silva

para H. Dobal e Paulo Machado

que anjo sobre a cidade
anuncia coriscos na nuvem?
mensageiro do poente
o sol se declina em fogo no oriente
clarazul céu de enigmas
decifra homens taciturnos de esperança
os rios riscos primitivos
seca suas margens de areia e sonho
um artifício de paisagens
pontifica demolindo memórias antigas
à fome de justiça sobrevive
o rapaz da rua da glória
o que que há que não
se intui quando o vento de setembro na pele imita carros de fogo
uma aliança renovada
sustenta o arco-íris na retina dos habitantes
depois do verão solar
chuva de raios trovões no metal dos pára-raios das árvores secas
o relógio rosa da praça rio branco
ensina uma política de signos sob a velhice retórica
o mesmo anjo que circundou uma espiral
a margem da floresta de pedra a retidão da frei serafim silencia:
VIVER É VINGAR-SE DA MORTE!


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

1ª LIÇÃO DA CIDADE, Elias Paz e Silva


aprender nos tortos
passos do quarentinha
a poesia marginal da cidade
os guetos a fome
e o grunhir
dos que sobrevivem como lixo
cartão-postal
para os olhos desatentos dos turistas


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

O SON(H)O DA CIDADE, Elias Paz e Silva


o sonho da minha cidade
é amarelo
na sua paisagem iluminada
(na pele de seu rio sujo)

o sono da minha cidade
é o sonho do seu povo
que dorme na mesma esperança
de todos os dias


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

CIDADEZINHA, Elias Paz e Silva


vamos
assistir à televisão na praça,
enquanto o dia bobo não vem.
nem um lobo
pra quebrar a rotina,
nem um beijo
tolo da amada.

vamos
assistir à televisão da praça,
enquanto vamos inventar um lobo,
e uma amada também.
tá pronto?


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

TER É SINA II, Elias Paz e Silva


cidade sem memória
sol e sombra do nada
sitia os deserdados

                  o fogo o terror nas casas de palha
                  os pedaços da doméstica
                  quarentinha bibelô nicinha

guerra silenciosa e
capital redistribui os espaços
da fome e dá forma à frei serafim

                  os anos fiados em miséria
                  perdidos à sombra do tempo
                  perpetuados à luz do dia
                  fabricados armazenados

teresina: claudino & cia
tajra tajra tajra taJRa tajra tajra

                  à igreja do santo negro
                  submersa em lendas
                  superpõe-se as torres
                  do amparo e a crença dos fiéis

paisagem artificial
se interpõe à brisa libertina
espigões tramam a colheita diária
de calor e cansaço

                  um monumento à morte
                  potycabana anfiarte
                  divisa a linha da vida
                  na miragem das coroas

ao lírico por do sol
avermelhando as cortinas
o rio se dá assoreado fulminado
entre navios sonâmbulos
paruaçu, rio de sonho, salve, salve.

                  um pescador de horizontes
                  senamora sete moças virgens
                  sobre o neon de natal da ponte

pára-raios vigiam o mito
coriscos já não riscam noite
não se pode dizer de lendas
antenas sensíveis decifram céu de enigmas


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

Elias Paz e Silva - síntese biográfica



Elias Paz e Silva [ ✰ 26/11/1963 ] nasceu em Teresina - PI. Poeta, contista, cronista e jornalista. Bibliografia: Poemário I (1991); Poemário II (1991). Participou dos livros: Poesia Teresinense Hoje (1988); Novos Contos Piauienses (1984); Outros contos piauenses (1986); A Poesia Piauiense no século XX (1995), entre outros.

MEMÓRIA (CAMINHOS DE ESTRELAS)




Vênus incendiava teus cabelos naquela noite
em que caminhávamos refletidos nas águas
margens assassinadas do rio poti
e no mangal
eu viajei na constelação dos teus olhos
e te dizia
a vida vai além daquilo q a gente imagina
e a liberdade pode estar ali
na próxima esquina
e sobre os trilhos noturnos
convergendo olhares favelados
com a tua mão esquerda dentro da minha direita
sentimos o fogo estrelar daquela noite azul
no céu de teresina
e o vento soprou leve
sussurrando em tua boca
entre o rio e a cidade existe um caminho
onde o tempo cicatriza toda dor



Menezes y Morais
em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995