25.10.12

Nathan Sousa - síntese biográfica



Nathan Sousa é poeta e letrista piauiense. Nasceu em Teresina-PI (1973) e mora em São Gonçalo do Piauí desde 2012. Estreou nas letras com poemas publicados na Antologia dos Escritores Piauienses, da UBE (2006). Participa de 12 antologias de circulação nacional. Tem parceria musical com Sandro Moura, Lucas Coimbra, Ângelo Santedicola e Naeno Rocha. Ficou em 2º lugar no XXXVIII Concurso Literário Internacional das Edições Arnaldo Giraldo-SP e autor dos livros de poemas O Percurso das Horas (edição independente, 2012) e No Limiar do Absurdo (LiteraCidade, 2013). Ocupa a cadeira de número 02 da Academia de Letras do Médio Parnaíba.

20.10.12

TRESIDELAS, Durvalino Filho

a Edmar Oliveira

THERESYNA
THE SUN
THE MOON
TYMON


Durvalino Filho
Os caçadores de prosódias
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1994

19.9.12

RODRIGO M. LEITE E A MUSA ESQUECIDA, por Elmar Carvalho


Tempos atrás, através de e-mail, mantive contato com o poeta Rodrigo M. Leite. Chamou-me a atenção o fato de que ele selecionou os meus poemas, publicados no A Musa Esquecida, da coletânea Poemágico – a nova alquimia. Por essa razão, mandei-lhe alguns de meus livros, cujo recebimento ele acusou. Elogiei os poemas que dele conhecia. Pediu-me escrevesse algo a respeito, pois pretendia publicá-los. Por causa de alguns contratempos, sobretudo relacionados com o assoberbamento de serviços em minha Comarca, mas também por causa de alguns compromissos de ordem pessoal, demorei a cumprir o prometido. Tento fazê-lo aqui e agora.

Tomei conhecimento da existência e do trabalho do poeta por intermédio de seu importante blog A Musa Esquecida, para o qual chamo a atenção de meus poucos e seletos leitores. Nesse espaço literário virtual, Rodrigo vem estampando belos poemas de autores piauienses, quase todos imersos em injusto esquecimento – daí o nome do sítio internético. Apesar do título – A Musa Esquecida – o blog não é nada esquecido, e tem retirado do olvido poetas valorosos. Desejo apenas que essa Musa continue a se lembrar dos poetas esquecidos.

Pedi, por bilhete virtual, que o poeta me mandasse sua síntese biográfica. Ele, demonstrando ser uma pessoa desprovida de empáfia e empavonamento, me mandou uma verdadeira “mini-síntese”, se é que se pode usar a expressão, de apenas duas linhas. Foi então que fiquei sabendo a sua idade. Tem ele apenas vinte e pouquíssimos anos. Nessa idade, eu praticamente não tinha biografia, exceto a que todos temos, mas tinha o coração cheio de sonhos e a alma repleta de ilusões. Pude realizar alguns de meus sonhos; de outros, me despojei, e alguns, perdi pelo caminho de minha vida. Algumas ilusões apegaram-se a mim, e ainda, teimosamente, me acompanham; outras, feneceram; aqueloutras, morreram, por mais que eu as aguasse.

Espero que o poeta tenha um grande baú cheio de sonhos, e que todos se realizem. Na sua idade, é proibido não sonhar. Tenho observado que alguns jovens literatos, para se sobressaírem ou para chamarem a atenção, gostam de aplicar bordoadas nos mais velhos. Não foi o método que escolhi. Não foi o caminho escolhido por Rodrigo M. Leite. Ao contrário, seu notável blog tem distinguido poetas bem mais velhos que ele. Isso parece demonstrar que é ele infenso à inveja e à provocação de escândalos e tumultos literários, que invariavelmente levam de nada a coisa nenhuma, posto que o eventual brilho não passa de efêmero fogo fátuo.

Sem dificuldade percebi que os seus poemas, embora inseridos no que existe de mais atual, não se perdem em vãs vanguardas, em superados formalismos. Também não enveredam em pretensiosos hermetismos, com que muitos pretendem adquirir a glórias de poeta sábio, filósofo, profundo, ou sibilino, quando muitas vezes não passam de mistificadores, inflados de presunção e bazófia. Igualmente não desejou seguir a trilha dos chamados poemas visuais, que nunca foram novidade, uma vez que em épocas remotas já se urdia o carmen figuratum, e já, faz várias décadas, que se comete o poema concretista.

Fiquei sabendo que ele só publicou até hoje uma plaqueta com seus versos. Isso denota que não é preocupado com quantidade, mas com qualidade. Pude sentir que seus poemas, embora sejam produtos da contemporaneidade, são impregnados das eternas lições da lírica de todas as épocas, da tradição que se mantém viva, porque amálgama da própria vida, porquanto embebida dos sentimentos que sempre existiram em todos os homens, a despeito de épocas, “ismos” e rincões.

Os seus versos cantam a vida, com seus encantos e vicissitudes. Suas metáforas são assimiláveis, e harmônicas ao conteúdo a que se referem. Por outro lado, não contêm imagens gastas, repisadas, inócuas, como comprimidos que já perderam o efeito. São límpidas e vívidas, e revestidas de novas substâncias, mesmo quando se reportam aos eternos temas da lírica de ontem e de sempre. Como Drummond, Rodrigo canta o tempo presente, as coisas e os homens presentes; mas como bom poeta, trata também de todos os tempos, até do des-tempo de um tempo sem tempo, “de um tempo sem medida, fugitivo / de ampulhetas e relógios”, como assinalei no meu Noturno de Oeiras.


Elmar Carvalho

Publicado originalmente no Blogue do Autor

<https://poetaelmar.blogspot.com/search?q=rodrigo+m+leite>

BEIRA RIO BEIRA VIDA, Marcos Freitas


beira de rio
açucenas
Casa Marc Jacob
Armazém Paraíba
lavadeiras
fogão e geladeira
troca-troca cais

beira de rio
pescador na CEPISA
manguezal no São Pedro
balsas em travessia
lavadores em agonia

beira rio
quase morto
assoreado
noite e dia


Marcos Freitas
em Urdidura de sonhos e assombros
Poemas escolhidos (2003 – 2007)
Rio de Janeiro: CBJE, 2010

18.9.12

PRIMEIRA FOTOGRAFIA VIVER TERESINA




Tentar compreender este sinal esquecido na vastidão do país.
Povoam-lhe um mundo próprio e professo calor humano.
A uniformidade da cidade, as ruas pequenas,
casas tímidas; seus quarenta graus mostram tenacidade
dessa gente em mudar seu destino.

A natureza proclama as águas do cenozóico rio,
ela pede respeito ao Velho Monge.
Mas, como esquecer a classe medianamente comprometida
com oligárquicas posições?

Cidade que é outro lado também aponta, a vida fácil
e colunável e superfídia,
percebida no volume que auferem algumas rendas
e a massa submersa em carências.

Invadem em rios subterrâneos, luzes que são espírito e ponte,
os artistas da cidade - contemporâneos do mundo:
os pés na história local
e o rosto voltado para o universal.

O povo recolhe sua presença nos fins de semana e
finge não ver suas raízes fincadas ao chão.
Não é possível compreender-lhe a razão: elegem
seus candidatos como quem aguarda redentor.

Teresina, Verde Cidade menina,
teu solo é paixão, dor e terno afeto.
Caminha. A felicidade se esconde aqui,
mas só se mostra quando estamos no exílio.



em O ofício da palavra
Teresina: FCMC, 1996

20.4.12

SEMELHANÇA




O rio é como a gente,
se vai o tempo inteiro.

Sempre está ali:
à margem de nós,

passando.



Laerte Magalhães
Um ponto fora da curva 
Teresina: 2007

15.4.12

TRISTEESINA




luzes azuis cal-
                      cinantes
Vermelha
Cajueiros
Buraco da Velha
Baixa do Chicão
Barrocão
bairros da zona sul
       - de minha infância ...
tapete quadriculado
ruas planejadas na
                Chapada do Corisco:
risco vento balão de São João...
ruas de ruas
                        barros
                                     rocas
 caminhos
                    feitos
                                  (des)encontros
meta-
               morfoseados:
                                            tristes
                                                           resina



Marcos Freitas
em Urdidura de sonhos e assombros
Poemas escolhidos (2003 – 2007)
Rio de Janeiro: CBJE, 2010

10.4.12

VISTA DE TIMON, por Francisco Miguel de Moura



Onde o teu verde olhar, mulher?
No corpo não, nos olhos não.
Quanto asfalto, lixo, TV, esgoto, favela.
Prédios do INPS (agora INAMPS), do Hotel (Luxor)
Piauí e da Associação Comer-cia(I), entre
- mangueiras que não dão mangas -
perdido a gente se vê.

Do lado de cá te olhando
Como se admira um postal
bem nos olhos esta canção
senti.
Canção menor, de amor de mais
de quinze anos e um filho,
e dos dias já vencidos.

Volto a fita dos meus sonhos,
Ponho-me no âmago Poti/Parnaíba,
bem onde as águas se irmanam escuras

e os desejos se perdem,
e me declaro réu:
- Narciso em teus espelhos.



Francisco Miguel de Moura
em 145 anos: Teresina cidade futuro
Teresina: FCMC, 1997


19.3.12

TERESINA, Laerte Magalhães


A cidade é pequenina,
mas o sonho é imenso,
feito o rio mais extenso,
que nos banha e nos fascina.

Ao dobrar de cada esquina,
sob o céu que nos socorre,
cada rua que nos percorre
para o bairro a que se destina.

Barcos que, sob pontes,
conduzem também destinos,
homens, iguais a meninos,
são afluentes e fontes.

Nas veias correm também
veios de luz, raios vivos,
os rios passando altivos
são rios de querer bem.

No bulício da quermesse,
o calor que desatina,
o coração de Teresina
é o sol que nos aquece.


Laerte Magalhães
Um ponto fora da curva
Teresina: 2007

17.3.12

O PARNAÍBA, Martins Vieira


Vem de longe, tangendo alvacentas espumas
Ao sabor da corrente, eriçando cachoeiras;
Aqui, se aperta; ali, se espraia, enquanto as plumas
De leques vegetais baloiçam nas palmeiras.

Leva a flor que tranquila adormece entre as brumas
E se deixa impelir como as balsas fagueiras,
Onde geme o violão do embarcadiço, e algumas
Das cordas vão ferir as cordas verdadeiras...

- Ó rio lá de casa, ó Pai velho das crianças,
Águas que vão molhar, o solo e as belas tranças
Da noiva que se banha em ti, ao vento e à luz,

Ó rio benfazejo, aplacarás a sede
Do mar, deixando aqui o pão em cada rede
E a nós, pelo batismo, o nome de Jesus.


Martins Vieira
em Canto da Terra Mártire (1977)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

16.3.12

O SONHO POSSÍVEL, Hardi Filho


           Mil novecentos e oitenta e oito
Pra seu final o século caminha.
Mais um milênio! A festa se avizinha,
E é tema deste soneto afoito.

           O tempo é de inflação (sobre o biscoito,
o pão, a carne, a banana, a farinha...)
Mas é também de avanço (antes não tinha
Moça donzela pronta para o coito).

           A vida está um caos, um pardieiro
onde se faz de “tudo por dinheiro”
e a honra é um mar que quase já secou.

           Em Teresina – Piauí – Brasil,
meu sonho é alcançar o ano 2000
sendo o homem que sempre fui e sou.
em Antologia dos Poetas Piauienses
Organizado por Wilson Carvalho Gonçalves
Teresina: 2006

7.3.12

O RIO




O rio não é mais
um veio de esperança
nem o livre caminho
que nos conduz ao mar.
O rio é um fio de sujeira
- cemitério aberto –
que na tarde se funde
com as cloacas da cidade.



V. de Araújo
em POESIA TERESINENSE HOJE
Teresina: FCMC, 1988

6.3.12

O BAR DO PICOLÉ




Na praça do Liceu, esquina da Rua Simplício Mendes com a Desembargador Freitas, havia o bar onde se fazia o melhor picolé da cidade. Tão natural que vinha o resíduo da própria fruta. Diferente daqueles preparados com água e um pozinho colorido, vendidos nas ruas ou no Lindolfo Monteiro em dia de jogo. O cara gritava picolé de tamarindo e, quando se ia ver, era gelo puro. Da fruta mesmo um sabor distante, pra lá de Timon.

A mulher que atendia ao balcão era pequena e magérrima. Tinha feições de índia e, nos olhos, uma tristeza que causava pena. Não ria, nem falava. Recebia o freguês sem um obrigado. E movia-se devagar como se carregasse um fardo de toneladas.

Por essa época, Milton Rodrigues ainda namorava a tia Aradi - namoro arrastado, sem fim. Ele costumava aparecer lá em casa duas ou três vezes por semana, sempre depois do jantar, para marcar ponto. Os dois colocavam as cadeiras de cipó no corredor que dava para a rua e ficavam sentados, com intervalos de silêncio, como se não tivessem mais nada o que dizer um ao outro. Asseguram que isso é normal em longo relacionamento dessa natureza. Às vezes, ele levava o violão e dedilhava notas desencontradas e trechos de canções românticas, que ela ouvia atenta com aquele olhar de apaixonada, sonhando com o casamento - que viria oito anos depois. Mas sua presença me agradava, especialmente, quando me mandava buscar picolés, que eu trazia numa vasilha de alumínio, com os dedos das mãos enrijecidos. Valia, pois na distribuição minha cota era maior.

Numa dessas noites, tia Aradi comentou que a mulher do bar estava tuberculosa. Conversa que ouvira no trabalho. A partir dali não se compraram mais picolés. Foi o fim das farras que Milton patrocinava, sem exibição. Havia preconceito contra essa doença. Ai de quem a portasse. Estaria condenado à segregação, ao degredo domiciliar. A família isolava seu doente num cômodo de onde jamais sairia. Ali aguardava a morte, às vezes antecipada pela solidão.

O teresinense nunca foi de medo. Criado entre trovões e coriscos, aprendeu cedo a tocar a vida, com coragem e cabeça empinada. Mas, quando se tratava de tísica, ele pensava duas vezes. Até mais. E exagerava nas precauções.

Tio Olinto assimilou esse hábito. Chegado do Maranhão, entrou em pânico ao saber que a casa que alugara havia sido ocupada por um homem devorado pelos bacilos de Koch. Não houve quem o tranquilizasse. Nem o senhorio afirmando que pintara a casa com cal e a desinfetara com creolina. Desfez o contrato e alugou outra na Rua Riachuelo.

Boato espalha-se mais que fogo em palha seca de carnaúba. A história da tuberculose na mulher ocorreu e afugentou os fregueses. Chegou o momento em que não havia mais o bar, nem a mulher, nem os picolés.



José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

5.3.12

O CASO DO BUROCRATA MR-7 E SUA AMANTE LEE DIAMOND, Chico Castro


"Sou chefe de pessoal de uma
grande empresa,
dessas que têm autorização especial
dos órgãos estatais
para a exploração da flora  da fauna
piauienses.
"Possuo um apartamento
financiado pela Caixa Econômica Federal
nas melhores condições de
pagamento do mercado:
* 4 quartos
* living com varanda
* suíte com vídeo deck e bar
integrados
* sauna e sala de repouso
* salão de ginástica equipado
* quadra de esportes
* sala de estudos para crianças
* playground e jardim
* salão de recepções
* lavanderia exclusiva e vaga na
garagem".
"De segunda a sexta-feira trabalho
que nem um condenado,
enquanto minha mulher tenta
mudar de cara
na Emê Clínica e Estética
sonhando em fazer aquela
viagem ais EUA
que eu havia prometido ano
passado".
"Nos fins de semana eu me divirto.
Pego o meu carrinho comprado
numa dessas concessionárias da vida
e vou para o Nós e Elis. Lá eu
bebo, bebo, bebo, até
ficar quase de porre, os braços, as
pernas, a cabeça
aos trancos e barrancos, depois de
conversar sempre com a mesma
gente".
"No sábado à tarde, recebo e faço
algumas ligações, marco encontros,
vejo alguma revistas e jornais que
eu não pude ler no decorrer da semana,
e no domingo a minha sogra vem
almoçar aqui em casa
para o bel-prazer da minha mulher
que tem, finalmente, com quem
conversar".
"Depois do Fantástico, eu vou
dormir
pensando no meu benzinho, porque
amanhã é segunda-feira
e a vida, dizem os meus amigos, não
está para brincadeira".


Chico Castro
em O Livro da Carona 
Teresina: Edição do autor, 1994

3.3.12

ALUCINAÇÃO




O que mais me alucina
é não saber onde plantei minha sina
se foi em minha terra ou se foi em Teresina.



Adrião Neto
em Poesia teresinense hoje 
Teresina: FCMC, 1988

28.2.12

TERESINA NA DISTÂNCIA




O rio
   palhoças nos beirais
      pavios de castiçais
         anos cinquenta

Teresina
   dos incêndios corriqueiros
      - lamúrias ao vento

Vermelha Tabuleta
   Palha de Arroz ou Barrinha
      na faísca mortal
         da fênix

Bairros pobres
   do puxa-encollhe
       ancas nas ruas
          e a vida porre
              a escorrer pelo rio

O tempo andou devagar
   Depois das enchentes
      gente de todo lugar
Ah! - que a primavera não tarde
   para as perdizes transparentes



Hélio Soares Pereira
em Passarela de escritores (coletânea)
Teresina: Edições Jacurutu, 1997

22.2.12

VERBICIDADE




EU teresino
TU teresinas
ELE teve sina
NÓS teresinamos
VÓS tereis sinais
ELES teresinam



Durvalino Filho
em 145 anos: Teresina Cidade Futuro
Teresina: FCMC, 1997

21.2.12

CARNAVAL, CARNAVAL


Eu vejo as pernas de louça
Da moça que passa e não posso pegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

chico buarque


A bermuda de jeans e a camiseta verde. Calçou os tênis. Virou-se. Encarou o espelho. Penteou-se. Ouvia Don't let the dragon eat your mother, brother, de John MaLaughlin.
José entrou no quarto: - 'Tamos no carnaval, cara.
Ele: - Eu sei.
José: - Então?
Ele balançou o corpo. Uma Gibson 'The Les Paul' imaginária nas mãos ágeis.
José: - O problema é que não observamos as raí...
Ele: - Vamos.
Saem.

REINADO DE MOMO
PALÁCIO DA FOLIA

Edito Real

Sua majestade, Rei Zé Fortes, Primeiro e Único, no uso de suas intransponíveis e irrevogáveis transições legais


Decreta

Art. 1º - A partir de hoje reina a alegria e é revogada a tristeza.
Art. 2º - Os descontentes com o Reinado de Momo deverão ser confinados:
a) nas praias de Luis Correia ou Barra do Ceará;
b) em Sete Cidades; e
c) nas matas de Timon e adjacências.
Art. 3º - Nos clubes, todos devem pular, lépidos e fagueiros, juntos ou separados, porque a orientação do Rei é de que sem alegria não dá.
Art. 4º - Os condes e conselheiros do Reinado anterior considerem-se demitidos, pois no novo Reinado a bossa é nova.
Art. 5º - As coroas devem abdicar máscaras e soltar os enxovalhos, uma vez que no atual Reinado toda mulher é boa.
Art. 6º - Fica abolido o preconceito à transação gay; afinal, todos são iguais no carnaval e nem sempre o saracoteio dos quadris homologa a placa.
Art. 7º - Os que saírem nas ruas, pensando ficar fora do trino momino, deverão ser sequestrados e recolhidos ao Quartel General da Folia, na Avenida Frei Serafim, até a passagem do Trio Elétrico.
Art. 8º - Revogadas as disposições e indisposições em contrário, o presente Edito Real entra em vigor na data de sua publicação.

(Jornal O Dia, edição de 21/22 e 23 de fevereiro de 1982, pág. 7)


Aqui Pegou
18h15m

José, ele, a menina de óculos e o cara de bigode de arame.
Três copos. Quatro garrafas.
José: - Quem é homem não anda assim.
Ele: - Tudo é brincadeira.
Menina de óculos: - Li depoimento de um psicólogo que dizia o carnaval permitir ao indivíduo externar seus sentimentos reprimidos, o que somente é possível durante os três dias dessa festa orgíaca, pois nos outros dias a sociedade possui um papel castrador em face daquilo que ela entende por atitudes amorais.
Cara de bigode de arame: - É, quem é homem não se veste assim. Nem no carnaval.
Ele observou o revoar assustado dos pardais sobre as copas das árvores da Avenida Frei Serafim.
Rebuliço no passeio da Av. Frei Serafim.
Blocos de sujos, animados, vão e voltam, vão e voltam. Não se cansam nunca.
No alto, trinados de pardais.
Ele e José vêem um bloco: Unidos do Esculacho. Todos com túnicas.
Ele: - É o bloco dos artistas.
José: - Aquele cara ali é artista?
Ele: - É.
José: - Todos eles são artistas?
Ele: - Não. Tem alguns que são somente veados.

Uma garota, short de jeans e blusa com a legenda  University of California, encostada num Corcel II.
Um cara de calça preta e camiseta no ombro, depois de observá-la por algum tempo, aproximou-se.
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Ôi, Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Hein?
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Você é Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Você está enganado. Eu não sou Pussy.
César que não vem. O cara de calça preta e camiseta no ombro está bêbado. Cambaleia ao afastar-se da garota que chamara Pussy.

Numa cidade que se pretende civilizada, a polícia não acode aos desditosos habitantes martirizados por alguns engraçados sem espírito que levam horas inteiras espancando peles de zabumbas, quando as próprias é que deveriam ser escovadas, uma vez que a autoridade consente semelhantes exibições grotescas, inqualificáveis, dignas de zulus ou boçais.

(Revista Rua do Ouvidor, de 27/01/1900, citada por Chico Alencar no artigo Acabou o carnaval (mais faz muito tempo...), publicado em O Pasquim, edição de 25/02 a 03/03/1982, pág. 7).

Um corpo no chão. Ninguém dá atenção a ele.

Dançavam juntos, não dançavam? Por que, então, parou? Por que olhou-a diferente?
A moça: - O que houve?
O rapaz: - Não deveria estar com você.
A moça: - Por quê?
O rapaz: - Você sabe.
A moça: - O telefonema?
O rapaz: - É.
A moça: - Esquece, pô.

( - Fale
- Talvez você já tenha percebido.
Pausa.
- Eu gos...
- Alô? Você está me ouvindo?
- 'Tou, sim.
- Fale.
- Eu te a...
- Olha, você é um cara legal. Mas a...
- Continue.
Pausa.
- A minha cor, né?
- Pausa.
- A minha cor, né?
Afastara-se do orelhão. Sumira na noite.)

O moreno vestido como mulher e bucho forjado. Acompanhou-o à avenida o vizinho, sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito.
O branco vestido com bermuda super estampada e camiseta azul, sem mangas. Saiu no Puma.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado divertia-se, seguindo qualquer bloco.
O branco do Puma bebia no Coisa Fina; loura, sentada em suas coxas, vez em quando levava-lhe à boca um naco de carne.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado suado quando o dente começou a doer.
O branco do Puma balbuciou qualquer coisa no ouvido da loura. Saíram.
Bêbado com um litro de Mangueira na mão deu um trago de cachaça para o moreno vestido como mulher e bucho forjado.
O branco do Puma, com a loura, na pista da avenida, num e noutro bloco.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado viu o branco do Puma e disse para o sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Aquele filho da puta me tirou o emprego e não me pagou direito.
O branco do Puma espremia a loura, com força.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado, referindo-se ao branco do Puma: - Vou dar um pau nele.
- Sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Deixa pra lá, cumpade.
O branco do Puma continuava a espremer a loura.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado disse: - Vamos esquecer.
O branco do Puma pisou no pé do moreno vestido como mulher e bucho forjado.

Se as fantasias revelam, então o carnaval mostra um mundo invertido, onde o pobre pode "bancar" o rico; e os donos do poder podem buscar uma aproximação com o mundo dos homens, "bancando" pobres. Entrevistas com pobres que desfilaram de "reis" revelam esse êxtase carnavalesco, quando alguém pleno de anonimato social ganhou os aplausos, as atenções e os olhares de todos os segmentos sociais num desfile. Entrevistas com gente de classe média alta indica precisamente o oposto: aqui, há um prazer - como o de um arquiteto de sucesso - de "pisar de pé descalço o asfalto da Avenida". (...) Quer dizer, eu continuo achando admirável que uma sociedade no final do século XX ainda continue a celebrar suas relações sociais utilizando essa regra de inversão e, assim fazendo, possa permitir e legitimar um "troca de lugar", ainda que essa troca seja burocratizada, controlada pelo Estado, fugidia e tenha data marcada. Porque, apesar de tudo, é uma troca que permite vivenciar a justiça e a igualdade, a liberdade, a vitória e a esperança. Esses ingredientes centrais de qualquer transformação social concreta.

(Fragmentos do artigo Carnaval: o verdadeiro milagre brasileiro, de Roberto da Matta, publicado em O Pasquim, edição de 26/02 a 04/03/1981, pág. 5)

- É bicha.
- Não. É uma mulher.
- É bicha.
- Porra. É mesmo.
- Olha outra ali.

Primeiro uma chuvinha fina. Parara. Pouco depois, como da vez passada, espectadores à procura de abrigos. A maioria permaneceu na chuva.
- É incrível, ouvintes. Nem a chuva que desaba sobre o centro da Cidade Verde consegue afastar os espectadores da Frei Serafim. A chuva aumenta cada vez mais o entusiasmo do folião. Dá mais gosto de se ver um carnaval assim.
Locutor do Posto Nº 1, da Secom:
- Loucura. Toda esta chuva e o carnaval se torna ainda mais quente, mais movimentado. Não tenham dúvida: nesta festa explodem tradições milenares trazidas da terra de origem e abafadas durante o ano inteiro. É para esta festa, que é a maior do ano no Brasil, que o povo economiza o ano inteiro.
Ele e José tinham deixado numa mesa do Aqui Pegou a menina de óculos e o cara de bigode de arame. Caminhavam lentamente. José não parava de falar. Ele viu a garota de short jeans e blusa com a legenda University of California.
Ele: - Olá gracinha.
Garota de short e jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy.
Ele: - Hein?
Garota de short jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy. Me chamo Pussy.
Ele fez sinal para José.
Garota de short jeans e blusa com a legenda University os California: - Parece que ele se chateou.
Ele: - Um chato.

Locutor do Posto Nº2, da Secom:
- Atenção Laura Maria. Atenção Laura Maria. Sua mãe te espera aqui no Posto Nº 2. Compareça o mais breve possível.

Quem não conhece o carnaval não conhece o Brasil, e quem não gosta de carnaval não gosta da alma brasileira. O carnaval ainda é feito pelo povo, já que a participação popular espontânea é maior que qualquer interferência dirigida, venha ela do poder público, de empresas privadas ou de qualquer pessoa diretamente interessada na festa. Essa manifestação espontânea é tão poderosa que mesmo durante as ditaduras impostas ao Brasil - do Estado Novo ao período pós-64 - conseguiu ser mais forte que a repressão. O povo continua dançando e cantando, porque para o povo brasileiro cantar é tão importante quanto sobreviver. (...)
O morador do morro, quando encontra um vizinho no bar, não quer falar de suas desgraças. Prefere cantar sambas. Se tiver um pouquinho de sensibilidade, já faz um ritmo. Um pouco mais e improvisa em verso. Esse comportamento não morre com a ação de forças externas e garante a eterna sobrevivência do carnaval.

(Albino Pinheiro, fragmento de O carnaval é eterno, revista Veja, nº 703, pág. 90.)

José no bar.
Três garrafas vazias sobre a mesa. Pediu a quarta. Duas vezes levantara-se e fora ao banheiro. Fedorento.
Cerveja esquentando no copo.

Populares cercavam um corpo no passeio da Avenida Miguel Rosa, em frente à AFAL.
O assassino agiu rapidamente. O homem corria com dificuldade e Violeta, sóbrio, facilmente abateu-o.
Conjectura-se que tudo aconteceu por causa de uma puta chamada Margô.
Violeta, após matar o homem, tirou da bolsa uma gilete e começou a cortar-se, principalmente no antebraço esquerdo.
Desesperado, deixou a peruca cair.

As paredes desbotadas. Quase brancas. Cadeira na palha, bacia, jarra, penteadeira e cama.

Pussy virou-se. Encontrou-se diante de um homem que lhe sorria. Espantada, protegeu sua nudez. Levantou-se rapidamente. Vestiu-se. Abriu a porta. Saiu.
Na rua, duas senhoras, com terços e véus, caminhavam para a igreja.
O sol há muito fora parido.


1º Lugar do II Concurso de Contos JOÃO PINHEIRO,
Realizado em 1982



Manoel de Moura Filho
em Novos Contos Piauienses
Teresina: Fundação Cultural, 1983

13.2.12

CASA DE PALHA, Gregório de Moraes


Acenderam a luz da lamparina
A casa vibra tenra, iluminada
Tanta doçura, tanta, em quase nada
Espelha esta gigante Teresina!

É noite! A paz em todo lar domina
Casa de palha, velha, desbotada
Eis minha vida em versos decorada
Pobreza que tão tarde me fascina

Eu venho de outros mundos soluçando
Estas lembranças que me foi roubando
O tempo que passava loucamente!

Casa de palha: marcos de bondade
Que vão somando, vão pela cidade
Lastros de amor no coração da gente.


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

12.2.12

NO OLHO DA RUA




no calçamento da cidade
tropeça
o pensamento do poeta
(já vai longe o tempo
em que se corria no meio da rua
e o loucos
só atiravam pedra na lua
só atiravam na lua
se retiravam na lua)

quem se importa com a porta?
há tantas e tortas para se abrir

cai a primeira pétala
por sobre a pérola do olhar perdido
- é o infinito que termina
no incidente da próxima esquina

é o espelho que reflete (vermelho)
a rosa par (t) ida
a ilha ferida
no último bote da serpente ocidental

(qual é o mar
em que homens azuis carregam fuzis
e descarregam mísseis
nas costas do povo?)

é hora de botar as barbas de molho
abrir o olho e erguer o malho
porque à noite
os cães rosnam como cães

a cidade dorme como um anjo
e o poeta está no olho da rua

o sol não tarda a raiar



Laerte Magalhães
Cian, cobre todas as coisas
Teresina: Costa, 1991

11.2.12

RESISTENCIAL, Francisco Miguel de Moura


Teresina, oh Chapada do Corisco,
sofro de ver teu corpo de pobreza,
desfolhada no meio da luxúria,
quando a chuva desmancha-se na areia.

Sem serras e sem montes, te dominam
os demorosos vales dos meus rios
Parnaíba e Poti, líquidas mágoas -
- Piauí danado, sem correr.

Vizinho, o Maranhão é a nossa vista,
em verdes copas de palmeiras verdes.
Este consumo de calor - aqui.

Do cearense, irmão mais sertanejo,
sofrido em sol e seca e serra, houvemos
este exemplo feroz: de resistir.


Francisco Miguel de Moura
em 145 anos: Teresina cidade futuro
Teresina: FCMC, 1997

5.2.12

Cine Rex, Graça Vilhena


Rex
Mentex
007

Os goldfingers
a minissaia
o jeans
o sexo

braços mecânicos
e olhos de eternos diamantes


em P2 
Teresina: Livraria e Editora Corisco Ltda, 2001

4.2.12

BARRINHA QUE JÁ SE FOI, João Ferry


Barrinha, minha Barrinha
Viraste Palha de Arroz!
A palha não era minha
O rio levou depois

O rio, assim como o vento,
Depressa doido ficou.
Não houve chuva a contento
E o rio também secou.

Quando houve chuvas a granel
O rio sem paciência,
Cumpriu seu triste papel,
Levou tudo sem demência!

Na Vermelha, do Laurindo
Tanta gente brincou lá,
Que a Vermelha foi caindo
Descendo pro Mafuá:

O Mafuá cresceu tanto,
Mas, fez tantas confusões,
Que se acabou por encanto,
Como os bons Três Corações

Buraco da Velha foi
Também zona de alegria
Mas, adeus Bumba-meu-boi
Busca-pés e cantorias

O querido barrocão
Que nos deu Doutor Boeiros
Sucumbiu-se, foi ao chão
Dando vida aos Cajueiros.

Minhas saudades, porém,
Confesso, não me dão trégua,
Quando na mente me vem
O sol da Baixa da Égua.

São Raimundo! São Raimundo!
Frautas, luar, sonho e farra,
Virou poeira no mundo
Trazendo após a Piçarra!

Poti Velho, Teso Duro!
Poções, Noivos, e o Pau-Dágua!
Vamos ver, se temos furo,
Sem ter choro, sem ter mágoa.

Catarina e São Joaquim
Matadouro e Pirajá
Passeios bons do Angelim
Já não existem por cá.

Já não tem rua do Amparo
Nem da Estrela, nem da Glória,
Tudo mudou sua história.
Ficou tudo ao desespero!

Tudo se foi - Retrocesso!
Com fonte rara e divina
Veio em seguida o progresso
Engalanar Teresina.

Pedro Silva! Hoje tudo
Tudo! Tudo é diferente!
Tudo é grande e não me iludo,
Só nós dois somos gente!

Até mesmo a Não-Se-Pode...
Também assim é demais!
A nossa alma não sacode,
Ai, nunca mais! Nunca mais!


João Ferry
em A GERAÇÃO PERDIDA

de M. Paulo Nunes
São Cristovão/RJ: Artenova

2.2.12

MOROU (OU TÁ-NA-BOCA), Fontes Ibiapina


(Era o que ele - o tal fantasma dizia à pessoa que com ele se encontrava)


Que seja de nosso conhecimento, trata-se do mais recente fantasma que perambulou pelas ruas da nossa "Cidade-Verde" como disse Coelho Neto - Teresina. É pois, o caçula da nossa prole de duendes de nosso mundo de crendices  e superstições. Surgiu nas eras de 50 (entre 1956 e 1957). Durou pouco tempo. Pastou apenas pelas ruas do bairro Vermelha. Quando muito, ia até os Cajueiros. E só. Apenas  e tão-somente por estes dois subúrbios. Isto se deu quando estava em voga o dito morou!, bem como aquele outro - tá na boca! Então, a tal estória surgiu. Surgiu e ganhou terreno, se bem que haja durado pouco tempo, coisa de dois anos ou menos.

Durou pouco tempo, mas foi gastante comentado o tal Morou (ou Tá-na-Boca).  Comentários e mais comentários apareceram a tal respeito. Conta-se que era um bicho do tamanho mais ou menos de um carneiro grande, cabeludo, semelhante ao Lobisomem. Sempre aparecia, pela madrugada, às pessoas que transitavam, àquelas horas, pela Vermelha - especialmente Baixa do Chicão, rua da Macaúba, setores da Usina. Assombrou muita gente. Pintou o sete e bordou os canecos em suas andanças de assombramentos. Aparecia e avançava para a pessoa e, naquela sua voz rouca, grossa e escabrosa e com muita ênfase, dizia:

- Morou, Tá na boca!

A pessoa corria em disparada, porque o negócio era mesmo feio e escabroso. Aí ele acompanhava a pessoa até as proximidades de casa, repetindo aquele palavreado seu:

- Morou, Tá na boca!
- Morou, Tá na boca!
- Morou, Tá na boca!



Fontes Ibiapina
em 145 anos: Teresina cidade futuro
Teresina: FCMC, 1997

1.2.12

PRAÇA PEDRO SEGUNDO NOS TEMPOS DA LAMBADA


pernas à vista
pessoas indo e vindo, engraxates, cervejas
uma gatinha vendendo charme
meninos, amendoins e esmolas
olhos injetados
mãos amarelas vendem cigarros e bombons
uma turma de canas da civil
"lambada: botando fogo na noite"
em cartaz no cine rex
senhora com mais de quarenta vende espetinho à brasa
gordura fumacificada impregnando tudo
uma morena de seios lindíssimos
quatro mãos num diálogo de trejeitos
gays ao lado da banca de revistas
um bêbado diz que é o tal, que faz e acontece, e enche o saco
olhares de todos para todos os lados:
troca de projéteis silenciosos
fui atingido à altura do peito, mas já estou recuperado
um rapaz encabulado que tropeça
batedores de carteira relaxam na hora do descanso
(a hora do descanso é sagrada!)
doido varrido dorme na calçada do Teatro
sonha?
música em volume acima do suportável por uma vitrola rouca
caldo de cana
lambada para dar nos nervos de qualquer mortal razoável
paralisado um homem olha as formas da mulher que passa
gritos, assobios, acenos e copos contra a garrafa:
a disputa da atenção do garçom que, impassível, demora
o colega que tirou a tramela da língua após o terceiro copo
conversa animada
comentários diversos
um poste metálico no meio da praça:
herança inexplicável de um relógio digital que não vingou
especulações em torno do passado da praça
um casal que se beija
homem andando com toda pressa
trombadinhas perto da fonte
observação visual, táctil, gustativa e olfativa
observados patéticos
sons que muito lembram um inferninho
o próprio inferno
mãos que se tocam
palmadas nas costas:
demonstração de carinho ou virilidade?
impressos devorados por taciturnos leitores de prateleira
o bar do cuspe, à distância
uma turma de canas fardados
a galeria do Teatro, no local onde existia o bar Carnaúba?
anotação em papéis
convite para a inauguração de um bar
alguns vão ao Clube dos Diários
jornal das oito, seu Marcelino e A. Tito jogando conversa, Flávio na bandeja,
gente rara
um homem cuspindo a todo instante
motoqueiro sem noção do ridículo sobe a praça com sua máquina
e continua acelerando:
indisfarçável vocação para dono do mundo
a colega que só agora noto ser uma gata
conversa sobre o tempo e outras amenidades
convite para uma festa engajada e nas decências
colegiais de procedência indeterminada
lebres em pele de lobas
uma mulher com embrulhos
garota sensual usa saia curta estampada
picolés, pipocas e sorvetes
roupas coladas ao corpo
lua anunciando para breve encher-se de claridade arrasadora
o garçom que cobra a despesa além da conta
debates, negociações e acordos
pagamento em cheque
hora de levantar âncora
vamos em frente, a todo pano,
desbravar outras praias:
a noite é uma seda!


Manoel Ciríaco
em 145 anos: Teresina cidade futuro 
Teresina: FCMC, 1997

30.1.12

ESPERAR A TARDE CAIR




Esperar a tarde cair
e atirar os olhos na grande avenida
como um animal faminto.
Assim como o sol que vai fugindo,
fugindo vai meu coração.
Até quando os mortos me lembrarão?
Quero apenas ver o mar,
Mas há tanto concreto nesse horizonte!

Pessoas vivem além das árvores
Com segredos e mistérios
Cortados pelos cantos dos pássaros.
Uma morte não acabará com o reino,
Nem o reino acabará com as mortes.

As horas não correm ontem
Porque hoje não tenho compromisso,
Mas meu desejo não é parar o tempo
Porque este vive em minhas veias.



Francisco Miguel de Moura Júnior
em A POESIA TERESINENSE HOJE
Teresina: FCMC, 1988

29.1.12

O garrafeiro, Graça Vilhena


o garrafeiro era apenas um homem
que sobrava das ruas
também sujo de terra e esquecido
como as garrafas e cacos no quintal

suas mãos de cuidado
tangiam aranhas, lagartixas
e vez por outra
um escorpião afiado

depois arrumava as garrafas
lado a lado
âmbares, azuis, verdes, transparentes,
num arco-íris pobre

"essas são de vinho tinto"
dizia-me ele embriagado de vazios
e as de fundo côncavo serviam
para pescar piabas no Poti

o mundo é duro e frágil, eu aprendia
mas nele lições pequenas eternizam
piabas prateadas nas garrafas
como rútilos presos nos cristais


em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

28.1.12

AQUELA CIDADE




Os habitantes daquela cidade andam pensando os seus caminhos;
ajeitam na dureza da terra, o porvir de novas bocas.

Acordam o dia com olhos de melancolia
e tateiam a cintura das meninas sensualmente.

No que atinge o Halley as suas vidas?

Nos grossos colarinhos desbotam manchas solares,
e nem sempre vestidos estão de esperanças
mas carregam consigo seus filhos presos as suas tetas.

Os habitantes daquela cidade andam audazes de lentidão.
Ao futuro consultam a tática da luta ou alguém,
um feroz que realize o mágico?

Os habitantes daquela cidade ficam
dopados de tenra candura por uma cidade que se guarda em dizer-se.



em A poesia teresinense hoje 
Teresina: FCMC, 1988

26.1.12

EXCERTO DE BALADA DO SANATÓRIO MEDUNA




Paisagem! É a nova coluna do helesponto erguida
Em suave gradação, depois desce um aclive, pára
E se estende até às margens do rio Poti;
Aí ficam a deveza e as ravinas, atravessando

A faixa que mãos nipônicas trabalharam,
Olhos oblíquos voltados para o Império do
Sol nascente. Cerejeiras em flor, lembranças.
A entrada está franqueada por “flamboyants”

E vivendas que sugerem, sugerem sempre
Coisas da França Antiga, romântica. Ao alto
Vasta cidade quadrangular, simétrica,

Com ornatos e recamos, longos corredores;
Ao lado se entremostra a pequena igreja
Acolhedora, refúgio dos aflitos...



Fabrício de Arêa Leão Carvalho
em Antologia dos Poetas Piauienses
Organizado por Wilson Carvalho Gonçalves 
Teresina: 2006

24.1.12

PRAÇA PEDRO II




Praça Pedro II, outrora Aquidabã. Não entendi a mudança do nome, que era mais sonoro, romântico e original para o local. Historicamente, não há como se justificar, pois o Imperador jamais pusera os pés no Piauí, nem mesmo os olhos. Tampouco a sua consorte, a quem deram o nome da capital. Falta de imaginação ou puxa-saquismo. Resquício da bajulação reinante no Império.

Foi ali que vi o maior ajuntamento de gente na cidade. Aconteceu no show com vários cantores famosos do Rio, patrocinado pela Vigorelli. Se tudo do Rio de Janeiro já exercia fascínio, aquele espetáculo com os melhores intérpretes da música popular, como Nélson Gonçalves, Orlando Silva, Ângela Maria e Adelaide Chiozzo, dentre outros - só vistos no cinema - era algo encantador, deslumbrante. Arrebatador de público. Ainda mais gratuitamente. Naquela noite, ninguém permaneceu na porta da rua, fugindo do calor e das muriçocas.

Desde cedo, a praça foi recebendo gente. De todos os quadrantes. O palco armado na sua parte superior. À hora marcada para o início do show, a massa presente. As figueiras lotadas de espectadores que não deixaram espaço, nem permitiam que outros subissem, o que me irritava, porque, não encontrando uma posição que me desse visibilidade, ainda não podia subir numa. A molecada não deixava e até me cuspia. Foi quando, providencialmente, apareceu o Cacique que, já acomodado num galho e vendo meu desespero, me chamou e me ajudou a trepar na que estava, embora sob os protestos dos ocupantes. Esse meu companheiro da Quinta Velha, de índio só possuía o apelido. Tipo magricelo, alto, uma barriga que não tinha mais tamanho, calmo, falava pouco e gozava da fama de valente, mas nunca o vi brigando. Dificilmente tomava partido nas discussões e, quando consultado, opinava com ar professoral, sentindo-se importante. E sua opinião era acatada, valia. Por ser o mais velho do grupo, os novos acreditavam nele, tanto que, havendo jogo fora, era levado para atuar como consultor, protetor. Gostava dessa deferência. Mas, aos poucos, ele foi ficando esquisito e sumindo do nosso meio. Falava menos ainda. Passou a se fechar em si, não saindo de casa. Chegou ao ponto de que nem a cara punha na janela. Diziam que adoecera da cabeça porque se masturbava muito

Da figueira, eu avistava nitidamente os artistas, até os detalhes de seus trajes, apesar do desconforto. Mas não importava. Melhor do que ficar no meio da multidão, fuçando lugar feito tatu e levando empurrões. O inconveniente era não poder me mexer, daí me doíam as costas, porém a beleza do espetáculo compensava o sacrifício, tirando-me o pensamento da dor. E eis Adelaide  Chiozzo, em cena, cantando e tocando acordeão. Babaquice geral. Seu jeitinho manhoso. Cabelos médios e lisos. Conquistou a multidão. Naquele momento, então, ouvi um estalo no galho em que estava montado. Foi tão rápido que não tive tempo de pular. O mesmo despencou trazendo a cambada em cima de mim. Caí zonzo. Formou-se um pequeno tumulto, com gente correndo, pensando que fosse briga. No chão, ainda, fui pisado e acreditei que ia ser massacrado. Dei sorte. Consegui levantar-me, meio aéreo e fui mancando para casa, com alguns arranhões no corpo, sem mais querer saber do show.

Aquele recorde de gente superou de longe o público dos comícios. Até no que compareceu Adhemar de Barros, disputando, pela segunda vez, a Presidência da República, com o Marechal Lott e Jânio Quadros. Adhemar, no seu jeitão de alemão e com sotaque paulista, passou o tempo todo expedindo ofensas pessoais contra Jânio, chamando-o inclusive, de maricas. Nada de coisa séria na sua fala, mas o povo vibrava com os xingamentos. No entanto, Jânio, empunhando a bandeira da UDN, ganhou em disparada. Uma loucura de votos para sete meses depois abortar, sem dor, o cargo, pondo a nação confusa com uma batata quente nas mãos. Aliás, Jânio foi a maior e a pior piada deste País. E piada chula, cheirando a álcool.

Sempre foi a praça favorita para os grandes eventos, dadas a sua amplitude e centralização. Ela era dividida em dois planos. No superior, com iluminação fraca, ficava o coreto, onde a banda da Polícia Militar executava chorosos dobrados, cujo quartel central localizava-se defronte. Era a parte preferida por soldados e empregadas domésticas, que namoravam nos bancos semiescondidos pelos canteiros de plantas.

Só dava curicas naquele pedaço, como diziam as moças de família, referindo-se às empregadas domésticas. Na parte inferior havia os tanques, enfeitados por garças e algas marinhas. E o desfile em roda.

Moças de um lado, andando em círculo, e os rapazes do outro, em sentido contrário. Ou então eles ficavam parados, paquerando as meninas que passavam, geralmente, em dupla, de risinhos, cochichos e lançando olhares convidativos. Para alguns, a parte de cima era melhor, tinha futuro, porque o namoro começava na hora e já avançado - sem inibição e preconceito.



José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

13.1.12

TERESINA




Ela lá
espraiada entre pernas
negras, longas
entre céu
e sol

eu sul e frio

cotruco tijubina lapiana
fere, saudade
meu coração!



Keula Araújo
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

9.1.12

ODE ÀS COCOTINHAS



um dia desses sonhei
que de repente virei
imaginem, o latorraca.
as seis horinhas da tarde
caminhei descontraído
pelo canteiro central
da iluminada frei serafim.
vi aquela aglomeração
na altura do colégio 
das nossas santas irmãs.
era um enxame gigante
da mais bela espécime
a vicejar na paróquia
elas me viram
eu lhes vi
e qual não foi o ouriço
que o trânsito daquela hora
fez parar e engarrafou.
me dá um autógrafo de cá
me dá um beijo de lá
me mete a mão por aqui
que eu sei também que é ali.
o sonho que tava lindo
foi virando pesadelo.

eu, no sufoco de ter
na boca um chiclete
um sorvete, um picolé,
acordei gritando
acode, mamãe. 



Zeferino Alves Neto
em Revista Cirandinha

Número 1, Teresina: 1977

2.1.12

LEMBRANÇAS DE TERESINA




fui feliz como o Marajá de Burundi
embora tivesse uma odalisca só
acabei com o estoque de paçoca
                                       /e cajuína

fiz piqueniques imaginários
à sombra das palmeiras
e vi que o Piauí é parecido com
                                        /o Havaí
porque passei todo o tempo surfando
só não sei onde nem quando



Geraldo Carneiro
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

25.12.11

AOS VIAJANTES




Ó tu, viajante!
que ora estás
no meu Piauí.

Se passares por Teresina
e beberes no cálice
o amor materno
matarás no peito
a sede de afeto
que vive em ti



Hélio Soares Pereira
em Onde o horizonte vem esconder-se...
Brasília: Gráfica e Editora Esteio, 1982

24.12.11

NA CURVA DA ESQUINA




Na curva da esquina a vida é calma
E é urgentemente necessário gritar bem alto
A nossa maturidade.
Na curva da esquina a vida é calma
Mas é urgentemente necessário ter coragem de quebrar a imagem do santo.
Na curva da esquina a vida é calma
Mas é urgentemente necessário não ter medo da orfandade.
Na curva da esquina a vida é calma
Mas é urgentemente necessário fazer a curva da esquina
E amar como homem
Não como discípulo.
É necessário dobrar a esquina da revolta e
Ser matéria, simplesmente matéria, nada mais do que matéria.
É urgentemente necessário amar a mulher nua.
Não a imagem de Deus.
É urgentemente necessário dobrar a curva da esquina
Porque só na curva da esquina a vida é calma.


                             (Este poema é pré-Gramma.
                             Foi escrito em 68, eu tinha 17 anos, e até hoje é inédito)



Paulo José Cunha
em Livreto do XXXIX Sarau Lítero-Musical Ágora
Teresina, Agosto de 2010

23.12.11

EX-TERESINA




Teresina,
A minha,
Essa não há mais.

A minha
Era uma cidade sem cais
Pois essa atual veio depois
Do desaparecimento da Palha de Arroz

A Teresina
Dos Cajueiros
Do Barrocão
Da Maria Tijubina
Essa não mais se mostra à retina

A da Estrada Nova
Da Baixa do Chicão
A da Usina
Não há mais tal Teresina

A da vitamina do Mundico
Do pastel do Gaúcho
E a do Bar Carnaúba
Do programa do Al Lebre
Da crônica do Carlos Said
Das aulas de A. Tito Filho
Das agências da Saraiva
Do teatro de Santana e Silva
Das raparigas do corso

De tudo que já foi
Resta a cajuína
E uma nova Teresina
Que nunca termina
E constantemente nos ensina
A ter o seu amor como sina



Climério Ferreira
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

22.12.11

FOTO TABOCA




Quem não deixou
sua alma aprisionada
em 3X4
no lambe-lambe
do Seu Chiquinho
na Praça da Bandeira?



Marcos Freitas
em Urdidura de sonhos e assombros
Poemas escolhidos (2003 – 2007)
Rio de Janeiro: CBJE, 2010

21.12.11

TERESINA




Hoje, eu te contemplei
      na fantasia
            dos meus olhos

E te senti
      no calor da terra solta
            de minha infância

E subi
      nas tuas árvores verdes
            de minha juventude

E te molhei
      na água filtrada
            de minha saudade



Hélio Soares Pereira
em Onde o horizonte vem esconder-se...
Brasília: Gráfica e Editora Esteio, 1982

18.12.11

MANO VELHO, Climério Ferreira


dez horas por dia
ele esmurra as águas
esquecido do próprio nome
e nem treme a fala

(na beira do Parnaíba
entre surrões e cofos
suspira e tenta sonhar
um resto de homem)

nas águas sujas do ex-rio
o vaporzinho de cores berrantes
cruza a lancha moderna e veloz

mano velho, setenta anos,
vê no progresso uma língua estranha
à sua fala — e cala.


Climério Ferreira
em 16 Porretas 
Brasília: Gráfica do Sindicato dos Jornalistas, 1979

CLIMÉRIO FERREIRA - síntese biográfica





Climério Ferreira nasceu em Angical/PI. Mora em Brasília desde 1962. Poeta, cantor, compositor e professor. 5 livros (poesia, entre os quais Artesanato Existencial) publicados e um CD - Canção do Amor Tranqüilo (1995, direção artística de Clodo Ferreira). Participou de várias antologias. Com Clodo e Clésio, gravou 6 elipês. É parceiro de Ednardo e Dominguinhos. Tem músicas gravadas por Nara Leão, Elba Ramalho, Amelinha e Fagner.

16.12.11

CALOR REPENTINO




outro dia
cheguei a Teresina:
um calor quente de rachar.

no dia seguinte
parti de Teresina
que vontade enorme de ficar.



Marcos Freitas
em Moro do lado de dentro 
Rio de Janeiro: Ed. CBJE, 2006

15.12.11

RUA PAISSANDU, José Ribamar Garcia


Esta rua nasce no Parnaíba, para variar. E acaba na Pedro II. Mas o seu ponto forte, seu pique, o que a tornou famigerada, procurada, cobiçada, se situava nas primeiras quadras e se estendia pelas transversais próximas: A zona do meretrício. O prolongamento dos fins de programa. A continuação das farras iniciadas no Clube dos Diários, no Jockey Club. Ali, a noite era toda sorriso. A ansiedade, a curiosidade da primeira vez do iniciante. A cachaça dos habituados. o lenitivo do tédio dos inconformados. O refúgio dos inibidos, introvertidos. A satisfação das taras, manias, neuroses. A demanda geral do prazer, da variação, do diferente. O descarrego dos espermas retidos de jovens namorados. A eterna dor de cotovelo das mal-amadas. A preocupação das mães. O consumo de antibióticos contra a gonorréia, a sífilis, para gáudio da Botica do Povo, que esvaziava seu estoque e faturava. E o Jaime Gordo, olhando sobre os óculos de aros finos, acertava de cheio no diagnóstico, enquanto o Manoelzinho, semiperneta, com as mãos hábeis, furava bundas com suas agulhas, cuidadosamente desinfetadas. A perdição ou salvação. A ressurreição, afinal.

Os cabarés de fachadas iluminadas. As casas com calçadas altas e as mulheres sentadas à porta. Os becos de casinhas de um só cômodo Os bares, os botecos. Os salões de sinuca e o taco batendo a noite toda. A bola rolava macia sobre o pano verde. A quatro caçapa, a cinco em sinuca e um cara anotando os pontos no quadro-negro dependurado na parede. Vendedores ambulantes com barracas de comida - sarapatel, panelada. Ébrios caindo pelas paredes incomodando o sono dos mendigos. mulheres vagando tentavam salvar a noite. Pois cobra que não anda não engole sapo. Também não leva porrada. Alguns viadinhos saltitavam, solitários, segregados. Macho que se prezasse não transava com pederasta. Nem batia em mulher. E, contrastando com essa decadência humana, estavam o Estrela, o Danúbio com suas mulheres novas, limpas, selecionadas. Algumas de outras capitais. Menina-moça, escondia a idade nas pinturas, disfarçando os comissários de menores, mais preocupados em participar do que em reprimir. Garota de 13 anos fazendo carreira, sem corpo ainda de mulher, mas peitinhos despontados, já com pelos, desinibidas, mas sem jeito de fazer. À meia-luz no salão. A orquestra sobre o estrado num canto. As mesas dispostas em círculo e o espaço vazio no meio para a dança. Bolero, samba-canção, rumba, fox, tango, baião. A variedade para gostos diversos. Só não dançava quem não queria. Muitos aprenderam a dançar naquelas pistas, descontraídos, porque podiam errar os passos que ninguém ia reparar. A cerveja a preço dobrado da praça. Escolhia-se a mulher, com ela se bebia, dançava e depois o amor, sem pressa, no quarto, instalado nos fundos, que mal cabia a cama, a penteadeira, o guarda-roupas de solteiro. E a indefectível bacia com água, sob a cama, para lavar o membro do parceiro após o ato. O preço do amor dependia da mulher, pois, quando ela simpatizava com o sujeito nem cobrava, ou deixava o valor a seu critério. Ainda suplicava que passasse a noite com ela. A maioria era ingênua. Sonhava com o dia em que surgisse alguém para lhe tirar daquela vida. Algumas davam sorte e viravam amantes de velhos endinheirados, que lhes montavam casa, davam-lhe apoio e segurança. Essas mudavam, radicalmente, de comportamento, só devotando a fidelidade ao seu homem. As histórias se pareciam. Origem humilde. Namoro. Defloramento. Expulsão de casa. Ou família numerosa. Miséria. Fome. A fuga para sobreviver na cidade grande. Sem conhecimento e nada sabendo fazer, convergiam para aquela vida, sem alternativa.    

No Estrela, ocorreu a desmoralização do Cecéu, boêmio inveterado, vivendo às expensas do pai e tido como bom de briga, já tendo enfrentado no braço, uma guarnição da Polícia Militar. Nada lhe acontecia, devido ao prestígio político paterno. Boa pinta, cabeleira cheia, com topete caindo sobre a testa. Andava impecavelmente, vestido de linho, todo engomado. Achava-se belo, irresistível e querido pelas mulheres. No entanto, levou uma surra feia de uma rapariga porque cismou de colocar no seu traseiro. A mulher virou bicho. E lhe meteu a tranca da porta nas costas e ainda saiu espinafrando-o pelo salão, dizendo que ela podia ser tudo, menos galinha. Que devia ser respeitada. Foi um vexame. O Cecéu saiu contorcendo-se, envergonhado mais pela rejeição e humilhação pública do que pela paulada. O acontecimento se espalhou. E ele passou a ser chamado de Cecéu Corococó.

Fazia ponto no Danúbio o poeta Valdomiro. Figura magrinha, baixinha, de aparência frágil. Adorava ser chamado de poeta. Fazia versos para as mulheres; mas cada vez que compunha um poema, gozava nas calças, sujando-se todo. Tornou-se conhecido como o poeta do gozo fácil. Parecia não se importar com essa situação. E permanecia o tempo todo sentado a uma mesa, bebericando sua cachaça pura.

Não se falava ainda em tóxico. Nem mesmo no meio da malandragem, que se satisfazia com o álcool ou com o lança-perfume no carnaval. Aliás, no corso, os carros mais animados e bonitos eram os das putas. Fretavam dois caminhões e de divertiam atirando pó de arroz no público. Quando elas passavam, os homens viravam as caras, com receio de serem reconhecidos. Havia até uma senha usada por elas: lá vem o carro das primas. Coisa mais ou menos assim.

Até mesmo as brigas - um tanto frequentes - eram na base do punho, quando muito na faca. Não se usava arma de fogo. Pairava em tudo certo romantismo. Ainda uma pureza e respeito ao humano.


José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

14.12.11

Rua da Glória, Graça Vilhena

para o poeta Paulo Machado

paisagem de sol nascido
na estação do trem
cerzindo os dias
sobre as pedras da rua
que abrolhavam luz

manhãs tangiam beatas
palmolivelmente
para a missa do Amparo

senhoras varriam calçadas
recolhiam leiteiras
e caçavam histórias
com as suas línguas de camaleão

no mercado central
as verdureiras arranjavam
buquês de cheiros-verdes

e mais além
mulheres permaneciam
sem hora de seus dias
dissolvendo-se em transparência
nas escamas do cais


em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

7.12.11

CANTO EM TERESINÊS, Edmar Oliveira


das carnaúbas da minha terra
quase em disco de cera escutei
minha bandeira verdamarela
carnaubei palmeira bela
no porenquanto dos meus momentos
morrurubú de tantos ventos
gregoriei de água e vela
e aprofundei minha'alma nela
cidade em rio mergulharei
crispim do mar que nunca erra...


em Livreto do XXXIV Sarau Lítero-Musical Ágora
Teresina, agosto de 2010

6.12.11

TER-E-SINA, Francisco Miguel de Moura


Há Roma, Paris e Bagdá
com sonhos que não sei
com céus que me escaparam
pelos pés.
Você conheço de pele
de manha
de manhãs desfeitas
de sol e chuva meio a meio
de ponte anoitecer
de rua e rio e rima.
Só você com seus ares
de mulher que ensina
a vida, o ventre
e o tonel.
Teresina conheço de antros
de antes
Bagdá é um sonho
não vou lá.
Meu sonho em que sonho
de acordo
é você.


Francisco Miguel de Moura
em Presença da literatura piauiense
Organizado por Luiz Romero Lima
Teresina: 2003

4.12.11

A RUA, Torquato Neto


Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba

De uma rua de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas

Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
Rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua

Ê São João ê Pacatuba
Ê rua do Barrocão
Ê Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão
De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão

Ê minha rua meu povo
Ê gente que mal nasceu
Das Dores que morreu cedo
Luzia que se perdeu
Macapreto Zê Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu
Ê Pacatuba
Meu tempo de brincar
Já foi-se embora
Ê Parnaíba
Passando pela rua
Até agora
Agora por aqui estou
Com vontade
E eu volto pra matar
Esta saudade
Ê São João, é, Pacatuba
Ê rua do Barrocão.


Torquato Neto
em Torquatália, do lado de dentro
Paulo Roberto Pires (org.)
Rio de Janeiro: Rocco, 2004

3.12.11

TERESINA, Paulo José Cunha


Há quem te queira apenas Capital,
Cheia de prédios, moderna, vertical.
Mas te queremos também horizontal,
cidade calma, arejada, tradicional.

Há quem te queira só central,
nervosa, agitada - comercial.
Mas nós te amamos também periferia,
de gente pobre, alegre, simples: natural.

Falar mal do teu calor é puro engano
dos que não conhecem teu calor humano
Os que só veem em ti o moderno e o novo
não percebem que a cidade é o povo
e que és mais que cidade - és a síntese
de um Estado que olha pro futuro
sem jamais esquecer seu passado.

Claro que te queremos grande, moderna, progressista,
mas te queremos eternamente ingênua e pura,
amiga, sentimental, sempre menina,
ternura antiga, flor mimosa - Teresina.


Paulo José Cunha
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

2.12.11

FERRÉ, José Pereira Bezerra


Duas horas da madrugada dum domingo. No Morro do Querosene a movimentação diminui: as portas dos quartos das Putas, fecham-se e não mais se abrem, mas ainda ouve-se sons de copos que se confundem com gritos histéricos e exaltações de bêbados. Defronte a um cabaré, Ferré, homem alto e magro, trabalhador braçal, cambaleia ao ritmo do peso do próprio corpo. No dia anterior, da construção rumou aos botecos - encher a cara de cachaça - deixando a mulher e os quatro filhos dormindo sem jantar. Quando chegasse em casa tinha certeza da briga que a mulher devia estar aprontando, a exemplo de ocasiões anteriores "e com muita razão". Maria não se conformava com a atitude irresponsável do marido, e não raro trocavam tapas e pontapés sob os olhares lacrimosos das crianças amedrontadas. Ferré, não obstante a embriaguez tolher-lhe o cérebro, quer dormir com a família. Já está sem dinheiro, e a vontade é traída pela fraqueza do corpo. Rodopia, não sai do lugar. A cabeça doí-lhe e um mal-estar no estômago aflora. Acerca-se da calçada quase de quatro, senta-se com dificuldade. Minutos após está estirado em decúbito dorsal, dormitando, com as pernas afastadas em da outra, a camisa aberta, suada e suja de vômito. Adormece. Ao amanhecer, acorda atordoado com o sol ferindo-lhe os olhos. Moroso, senta-se e se põe a pensar na sua condição de pobre, bêbado e de pessoa. Não vê diferença. Senta-se envergonhado e num assomo de emoção, chora convulsiva e covardemente. Sai cambaleante, arrasado. Não deslumbra outras formas de desabafar o desespero, a não ser bebendo cachaça e/ou brigando com a mulher. E ainda existem pessoas que acham a situação de Ferré e sua família muito normal e até necessária. No caminho muitos vêem-no e dizem prosa: "a cachaça te mata", "a cachaça ainda mata o diabo". Ferré não responde, segue em frente, mas um palavrão contido às pressas escapa numa cusparada liguenta, (...). Baixa a cabeça, cerra as pálpebras e evita o pior, humilhado.


José Pereira Bezerra
em O Sono da Madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976