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15.10.18

Dobalina, por Elias Paz e Silva



lembrança de curral
na tarde oval

feixe de palavras
sobre o verão de arder

ao sol seca o tempo

chove o silêncio
na cidade infante



Elias Paz e Silva
A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


23.1.16

DEFINIÇÃO


                                            para nacif elias


Teresina:
ausência
de uma presença...
presença
da mesma ausência
só memória na memória
sempre viva.
só saudade... só distância
só vontade.
...e um ardor medonho no peito.


                                            (Rio, 23/08/62)


Torquato Neto
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

18.1.16

TRIBUTO A TORQUATO NETO




hoje que você se foi
e ninguém pode negar
o que está feito,
as palavras guardadas no peito

são flores navalhas
no chão do real
e um poeta conhece
o tamanho da fúria
capaz de gerar um furor
que as palavras são flor e punhal.

hoje que você se foi
e o tempo de chorar
também já foi-se embora
no verde final da nossa flora,
as palavras são flores de fogo.
e um poeta conhece o tamanho do verso
capaz de abolir o acaso,
que as palavras são lances de dardos.

hoje que você se foi
os bois que berravam na chapada
viraram sócios do açougue.
as mídias e os midas de sempre
silen$ifraram a nossa dor.
e neste cenário de real pavor,
como num lance de touradas,
o troféu é entregue ao matador.



Salgado Maranhão
em Punhos da Serpente
Achiamé: Rio de Janeiro, 1989

SOL DE MINHA TERRA




Trago n'alma o sol de minha terra
a luz maior, claridade em mim
no som do Parnaíba que se encerra
o trilhar de um caminhar sem fim

carrego, imune, a força mais pura
a saudade do amor eternal
traçada nas glórias da loucura
do meu sonho alegre e jovial

trago, enfim, a lembrança das ruas
os quintais da infância e as luas
que no Poti vivem em transe

e sufoco as tormentas cruas
que fizeram as dores nuas
da dor de ti que me confrange.



Afonso Lima
Palmas/TO, julho de 2009
em A CIDADE EM CHAMAS: poema trágico de um crime impune
Teresina: Multiservice, 2010

17.1.16

PESCADOR DE MITO, Wellington Soares


O pescador já pensava em desistir, pois não fisgara nada até ali, depois de horas brincando com a paciência, quando sentiu a vara envergar de repente, sob um peso insuportável, mergulhando a cara no fundo do rio.

Como os anos de pescaria falam mais alto, resolveu cansá-lo primeiro para, em seguida, tirá-lo fora. Só aí deparou-se, para espanto dele, não com um peixe grande, como era o mais provável, mas com a figura disforme do Cabeça de Cuia, mito de sua terra natal, apresentado geralmente como temor dos filhos malcriados.

Sob protestos da mulher, que alegava tratar-se de uma lenda e não de um peixe, mandou prepará-lo no capricho, com leite de coco e muito tempero, degustando-o com enorme apetite.

Ao final, apresentou-se no museu da cidade como o homem que tinha comido o Cabeça de Cuia. Hoje as pessoas que visitam o museu observam, com certa estranheza, aquele homem rude, de sorriso aberto e inscrição no peito, e não entendem o motivo de sua alegria. 


em LINGUAGEM DOS SENTIDOS
Teresina: 1991

12.1.16

ANZOL



Moro em Teresina
jangadeando jangadeando

Moro em Teresina
à trezentos metros da praia.
Coqueiros estão ali
ao azul próximos
próximos coqueiros, vê?
Verdes carrapichos, matinhos
n'areia, serp, serp.

Moro em Teresina.
5 da manhã morde-me
a praia.
Morde-me quente ali
à trezentos metros.

Ali a praia salga-me
os pêlos, salga-me
a língua, salga-me.




em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)

A CIDADE PERDIDA, Álvaro Pacheco




Sobrevivem alguns terraços
mas não as madrugadas
e nem as melodias dos boleros.

Conversam os fantasmas
com medo de lembrarem
os instrumentos do edifício
da vida que veio depois.

Os pórticos
à luz do dia e os terraços
ao entardecer informam:

mudaram-se



Álvaro Pacheco
Teresina, agosto de 1986
em O SONHO DOS CAVALOS SELVAGENS (1967)

13.12.15

A CIDADE MORTA


IX


                     Um dia escavarão esta cidade
                             nas sobras do futuro
      mas não encontrarão o sorriso da garota da praia
nem o instante de felicidade que tiveram um homem e uma
                                    [mulher numa noite de intenso verão.

      Acharão talvez um slide colorido da paisagem
              mas que não dará ideia do que foi a cidade
                                         nem o seu povo
                                      microfilmado dia a dia
em congestões de tráfego, abusos de poder e falta de amor.

                É difícil que encontrem um documento válido
                       da incompreensão que gerou
                                             tantas incompreensões
mas encontrarão pedras fundamentais e pedras finais
                    e talvez vestígios de uma catástrofe de concreto

mas

              — e as catástrofes íntimas
                   e o que cada um em si morreu no cada dia,
                   o que restará?
                 
             E o que encontrarão do esforço de eternidade
             que (cada um) fizemos para não morrer?
                             E de nossa linguagem, quem terá os cantos?
       E dos nossos destinos, quem reconstituirá os sonhos?
                                          E de nossa angústia, quem verá os traços?
                                        E de nossa solidão, qual será a ruína?

Passarão pelos escavadores apenas fantasmas inapreensíveis
                    e a memória repousará incógnita
                                                     sob árvores de pedra
                                                e estilhaços de metal.

               
                                                                                         dez. 66


Álvaro Pacheco
em O SONHO DOS CAVALOS SELVAGENS (1967)

11.12.15

"As árvores da Avenida Santos Dumont"




As árvores da Avenida Santos Dumont
                dividem o céu entre sol e semáforos
Parece que a beleza esconde toda dor
                e descanso a cabeça cheia de nada
Suas folhas não ligam para o casal no bar
                nem os passageiros que decolam com medo
                em outro voo do Aeroporto Petrônio Portela
Passeio, sem pressa, respiro, o sangue circula
Minhas pernas percebem o cair da temperatura
Interessante percorrer a anatomia dos sentidos
Jamais entenderei tal alegria flutuante
                Todo limite é miragem nessa parte da cidade
Sem saber, as árvores crescem alterando
meu corpo por diferentes estados emocionais



Thiago E
poema enviado pelo autor

"As árvores da Rua Álvaro Mendes"




As árvores da Rua Álvaro Mendes
                não existem para o aprendizado dos hábitos
Na calçada quebrada em que caminho
                seus troncos engrossam, alheios às pessoas
Há profundas rachaduras nas cascas dos caules
Olhando aqui, ou tocando nelas, é possível
                conhecer suas rugas – as ruas do tempo vivido
O sol não tem ouvidos para reclamações.
Essa parte da cidade de brasa e sombra
                melhora o pensamento em modificação:
                aquele encanto claro de palavra nova
                transmitindo mais surpresas que entendimentos
Passei a ter resistência aos poluentes urbanos
e o impulso extremo de absorver tudo



Thiago E
poema enviado pelo autor

24.11.15

O RIO PARNAÍBA




         Gargarejo de mortes de afogados 
e brilho de luar sobre o silêncio 
ruídos sem barulho de asas brancas 
invisíveis na esteira do mistério.

         Embarcações fantasmas com seus remos
violentando o espelho da corrente 
e a história dos antigos moradores 
que perlustraram a estrada do degredo.

         Nas margens as perguntas os inquéritos 
o tiro a interjeição e a morte cinza: 
gargalhada de álcool nas bodegas.

         A indiferença escorre como gosma 
e o rio na derrota da incerteza 
leva faunas estranhas no seu ventre.


 
Clóvis Moura
em "Argila da Memória" (1962)

CÂNTICO DOS PRANTOS




1 – da geografia dos rios

os rios conhecem a terra
musgos, relvas, pradarias.
ribanceirando os caminhos
ao encontro de outros rios.



desmatamentos, queimadas, esgotos
indústrias. roubo de areia
dos leitos para as caras moradias
canais de fezes, do mundo,
cercas, nada disso impede os rios



2 – o movimento dos peixes

os rios têm o seu povo
universos que se agitam
no milagre da existência
da vida de todo dia.



choram o verde que era verde
e hoje é seca, cinza, prantos.
choram os meninos travessos
que aplacam a ira dos rios.
choram os meninos e os bêbados
que morrem nas águas vadias,
nas águas da morte funda
da terra sem moradia.



3 – o tempo social dos rios

os rios choram seus mortos
nas enchentes e marés,
os rios cantam seus mortos
nas chuvas das cabeceiras.
lamento das lavadeiras
no barulho dos anzóis
nos esgotos que recebem
nas barragens que constroem.



é para os rios que convergem
as lavadeiras do Brasil.
assembléia de mães pobres
confluência da esperança.
com o sabão da miséria
i a grandeza cotidiana das mãos
ensaboam e enxagoam
a sujeira dessa vida.
vida de pobres e ricos
de dores y alegrias.



nesses tempos de miséria
os rios são o choro da terra.



Menezes y Morais
O Rio: Antologia Poética
Teresina: Edições Corisco, 1980

22.11.15

(sem título)




I.


Hoje é dramático e não encontro terapia nos pombos
A praça - esse mosaico - é ainda mais densa
Tudo é movimento nessa praça lenta
Eu sou peça solitária e torta
Destacada do cenário
Permaneço
À espera de um milagre:
Virar paisagem.




II.


Converso com os carros no centro confuso da cidade
Estou mais dentro das coisas do que de mim
O barulho do tráfego morde minha orelha
As luzes dos postes falam do meu escuro
O asfalto é meu amigo, talvez o único
As gentes que passam não sei se sentem
Meu cheiro forte de centro antigo



Ariane Pirajá
Inédito em livro
Enviado pela autora

21.11.15

A FONTE DA PRAÇA DO LICEU


                                        em memória do prof. Galvão


traça meu caminho como passa a
linha no fundo da agulha, minha
vista em toda lida afeita ao limbo
que esgotou na mina da praça.

céu de água azul no chão, de graça,
algo de branco sob as saias colegiais.
ao abrigo da libido, líquida cevada
sobe ao cérebro da teresina entediada.

romana ponte de menino travessa
a fonte, os cisnes, deslocados signos,
para sempre presos à retina, a vida
presa ao gole primo na passada praça.

primevo mundo. leviana cidade terna,
onde a água, fonte do eterno, fastia
a vista e desencanta. por que voltam
do passado passos dados sem valia?



Manoel Ciríaco
em agosto de 2003, Teresina/PI

11.10.15

SAÍ PARA COMPRAR PÃES, Rodrigo M Leite


rua do mercado fora de época do parque piauí
domingo, após o almoço
tomates apodrecem
a rua é um rio
que destrincha um bairro
em vários bairros
rua da casa da avó paterna
de relance, na esquina
um cavalo elegante branco
brilha sozinho
rua da locadora de videogames do sena
ou rua da igreja
um gato atropelado
incrustado no calçamento

________________________[urubus ao alho
________________________e óleo

Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita Ilustrada
Teresina: 2016

14.4.14

chuva® em teresina [ modo de usar ] ou [ o produto pra tomar ]




pesquisas confirmam que chuva® se apresenta na forma de pequenos caroços d’água que demoram que só... pra cair por aqui (ou virar um toró). haveria múltiplas aplicações para chuva® – porém existe o problema d’ela quase nunca aparecer, não podendo, assim, ser aplicada. sob esse céu-sol que sua nossa cidade, chuva® é um raro chiado, mas, quando chuvisca, bochicha e remexe a linguagem: pau d’água, pancada, ou procela varada, só com muita reza braba. seu joaquim, raimundim e seu vizim pedem um pouco de chuva® – acuda! mas veio foi um sereno e piorou o momento (repara o veneno): farelo d’água com sol de rachar faz é abafar; esquenta tudo e, mais ainda, a moleira que azucrina. estudos recentes atestam que chuva® é um cochicho – chiado baixinho, na boca do povo, talvez um boato que some de novo, um conceito empenado, bololô esculhambado, relaboque de desejos inventados: quem quer que chova está dentro de casa e não lavou roupa; quem não quer chuva® tem alguma mordomia ou resolve algo na rua. e, dependendo do que a pessoa está fazendo, ela muda o pensamento. neste entretanto de labacé e confusão, não há contraindicação: alguns fazem mandinga; outros passam os queixo, em teresina, dirdobrando – se não tem chuva® ou mar, vamos prum bar. ou vamos pra uma rede – uma rede social – de armador virtual brutal e total: no facebook compartilha-se a vontade por chuva®, até ciberprometendo pagar uma promessa, contudo, pós-moderna porque, o santo, depois a gente acerta; ou toda teresina trova no twitter toneladas da hashtag #chuvathe – entrando para o trending topics da tiração de "onda". e quem faz roça clama chuva® pra tentar matar a saudade da fartura. diz-se, apenas por aqui, na capital do piauí, chuva® tem o princípio ativo mais charmoso disponível – o de antever o incrível, o sublime intransferível – olhar pro céu, esperançoso, e o poema de um verso só dizer: tá bonito pra chover.



Thiago E
em Revista Piauí Terra Querida  
Agosto de 2012