24.10.18

DE VOLTA À CHAPADA DO CORISCO, Geraldo Borges



Domingo. Dia nublado. Bom para um passeio. Pego o ônibus à frente do hospital da Primavera, bairro onde moro, há mais ou menos três quarteirões distante de minha residência. Não demorei muito. Logo que cheguei o ônibus passou. Embarquei. Dei bom dia ao motorista e sentei em uma cadeira, ao lado da janela, reservada para pessoas idosas, senti a brisa suave da manhã. O ônibus não estava superlotado como sempre acontece durante a semana de expediente. As pessoas exprimiam um ar mais relaxado. Nenhum passageiro estava em pé. Pela fisionomia das pessoas não havia ninguém apressado.

Era domingo. Notei algumas pessoas com a bíblia na mão. O coletivo flui bem pelas avenidas. De vez em quando um passageiro tocava a campainha para avisar que ia descer na próxima parada. Enquanto isso eu me distraia olhando os transeuntes que passavam pelas calçadas, e observando detalhes em seus movimentos. Da Primavera ao Pro Morar, o conjunto habitacional para o qual eu estava me dirigindo o ônibus gasta uns cinquenta minutos. Atravessa o centro da cidade, passa pela Piçarra, o Parque Piauí, e finalmente chega ao Pro Morar.

Ao entrar no conjunto, já perto do ponto onde eu teria de descer, o motorista parou sem nenhum sinal anunciado, e deixou o carro ligado. E desceu para a rua. Atravessou o meio fio, subiu a calçada e entrou em uma farmácia. De repente me lembrei de um personagem de um romance de Carlos Heitor Cony, que, no papel de motorista, abandona o seu ônibus e deixa os passageiros a ver navios. Perguntei a pessoa que estava ao meu lado, se ele tinha ido mijar. Ela respondeu: foi comprar remédio. Quando íamos dando continuidade ao diálogo ele apareceu. Continuamos a viagem. Pedi o cara da catraca que passasse o meu cartão. E avisasse ao motorista que eu iria sair na próxima parada. Dito e feito. Quando chegou no ponto eu desci.

Em menos de cinco minutos eu estava na porta de minha comadre. Antes que eu me esqueça, levava embrulhada em papel jornal dentro de uma sacola de pano, uma garrafa de vinho. Subi a calçada, que é bastante alta e não tem degraus. A porta da casa estava fechada. E não tinha combinado a minha visita com a minha comadre. Estava me ariscando. Toquei a campainha várias vezes, e nada. Cansei. Só os gatos ouviram. A casa dela está cheia de gatos. A última vez que estive com ela, na volta, foi me deixar, no ponto de ônibus, e encontrou um gatinho abandonado, miando e o levou para casa. Pensei em deixar um aviso escrito na porta. Desisti. Pensei em deixar o vinho dentro do terraço, meio escondido num jarro de planta, também desisti.

Resolvi voltar para casa. Ao fazer o caminho para o ponto de ônibus passei pelo bar e restaurante, onde minha comadre é freguesa, e perguntei por ela. O dono respondeu que ela tinha viajado para a cidade de Colinas, Maranhão, onde meu afilhado, professor de inglês e francês, está lecionando.

Atravessei a avenida para pegar o ônibus de volta para casa. Quando ia chegando próximo ao ponto, avistei o ônibus já saindo da parada. Ia perde-lo. Mesmo assim, dei um aceno, apelando para a boa vontade do motorista; se ele não parasse eu teria de esperar outro coletivo. E com ia custar. Pois aos domingos a frota de ônibus fica reduzida O tempo estava se desnuviando. Para ventura minha o motorista parou, a abriu a porta, e eu entrei. Era o mesmo ônibus que eu tinha pegado antes.

Termino essa crônica pensando, como seu desfecho seria diferente, se a minha comadre estivesse em casa. Ou se eu tivesse brigado com o motorista pelo simples fato de ele ter parado o seu ônibus para comprar um tranquilizante.


23.10.18

DE POETA E LOUCO..., Edmar Oliveira

"Leve um homem e um boi ao matadouro. 
O que berrar mais na hora do perigo é o homem, 
nem que seja o boi" 
(Torquato Neto)

Somos contemporâneos e conterrâneos meio atravessados. Cheguei a Teresina quando ele já tinha ido embora e a nossa diferença de idade era enorme na meninice. Quando o conheci, a Tropicália já tinha sido feita, eu já conhecia todas as músicas que ele colocou letras, ele já tinha voltado do exílio no exterior, suas colunas nos jornais – algumas lidas por mim – já tinham chegado ao fim. No nosso encontro eu tinha 19 anos e ele 26, já perto de morrer aos 28. Portanto conheci o Torquato maduro. Por isso só consigo pensar nele como muito mais velho que eu. Foram encontros demorados e intensos, onde fizemos jornais, cinema e conversamos em demasia. Eu ouvia muito, mas também falava no atrevimento dos jovens. Só muito depois soube que ele tinha escrito, àquela época, ao Hélio Oiticica dizendo que conhecera uns meninos incríveis no Piauí – referindo-se à turma do Gramma, jornal pra burro, que só fizemos dois números mimeografados e deu no que falar até hoje. E a gente sabia que estava diante de uma pessoa importante para o futuro, quando a Teresina, que hoje o cultua, ainda não gostava dele.

Eu já estava na faculdade de medicina quando o conheci e quis o destino que, quando vim  morar no Rio, fosse trabalhar e dirigir o hospício em que ele foi internado, tentando transformá-lo no Instituto Nise da Silveira. Depois, quando estava no Ministério da Saúde, me ocupei do fechamento do Meduna, hospício piauiense, onde ele também esteve internado. Portanto, cruza-mo-nos outras vezes, mesmo depois dele morto.

Por conta desse nosso destino, perguntam-me sempre sobre a loucura do poeta triste. Nessa homenagem, a Revestrés também pergunta – na voz do povo – sobre o poeta e a loucura. Na faculdade de medicina eu estava inclinado a fazer saúde pública, local de refúgio de “subversivos” nos anos de chumbo. Foi Torquato quem me chamou atenção para o campo psi, quando me aconselhou a prestar tenência de que a psique humana talvez fosse tão infinita quanto o infinito cósmico. Por ele ouço falar de arquétipos que só entenderia muito mais tarde, quando conheci Nise da Silveira.

Na saúde mental me dediquei à Reforma Psiquiátrica, combatendo os perversos manicômios e as rotulações psiquiátricas para justificar a internação dos que estavam à margem da sociedade. E é desse lugar que dou a minha opinião.

Torquato tinha uma intolerância ao álcool, o que não acontecia ao uso de maconha ou outras drogas. Com o álcool, além da intolerância, tendia também a um consumo excessivo e o pacato e manso cidadão às vezes exaltava-se além da conta. Nada que justificasse uma “dependência química” tão a gosto do saber psiquiátrico de então. No Engenho de Dentro foi internado duas vezes. Da primeira foi submetido a tratamento com drogas psicotrópicas de efeitos tão devastadores ou maiores do que a droga que alegavam combater. Não aguentou a barra e fugiu. Evadiu-se, no jargão psiquiátrico. 
Retornou por ter encontrado Oswaldo dos Santos (psiquiatra reformista de então, não tão conhecido, mas da importância histórica de Nise da Silveira) num bar do Leblon. Osvaldo lhe recomenda uma internação na Comunidade Terapêutica que criara então no Engenho de Dentro. Mesmo hospício, mas outra prática. E nessa comunidade mais liberal não deixa de travar um embate intelectual sobre a loucura com Osvaldo dos Santos, como está descrito em “Diários de Engenho de Dentro” – parte integrante dos “Últimos Dias de Paupéria” (sua única obra póstuma que foi autorizada): “o Dr Oswaldo não pode fugir, nem fingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremos a nossa primeira entrevista”.

Mesmo numa experiência inovadora, como a Comunidade de Oswaldo dos Santos, Torquato percebia, com bastante lucidez, as contradições, a segregação psiquiátrica e a que classe esse saber sequestrava: “Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais – de qualquer maneira esperamos a ‘cura’ no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se ‘regenerem’, etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista (...) Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima (...) Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba. Pode me dar um cigarro? Eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte?”

Poderíamos chamá-lo de um “observador participativo” no jargão das pesquisas sociológicas de hoje, mas o homem estava internado no matadouro das liberdades, junto com os marginais sociais. Sérgio Sampaio o homenageou numa canção que compreendia a experiência vivenciada pelo poeta: ”Tive internado ontem / Na cabine 103 / Do hospício do Engenho de Dentro / Só comigo tinham dez”. Uma canção miúda, mas com um significado intenso e muito real da experiência de Torquato: “a minha cama já virou leito” retrata a contradição da psiquiatria em transformar uma vivência humana em doença, como discursaria Foucault sobre a transformação da loucura em doença mental pela medicina; “saí do palco e fui pra plateia / saí da sala fui pro porão”, a transformação do artista na geleia geral brasileira onde alguém tem de exercer o papel de medula e osso, na frase bem sucedida de Décio Pignatari e que Torquato emprestou a vida no cumprimento da sentença.  

No Sanatório Meduna, em Teresina, acompanhei a sua internação. Foi voluntária, para escrever e pousar para fotos da revista Nave Louca, que teve um número único. Foi interessante ver a sua relação com os internos. A sua relação deliberada com a loucura. Ele praticamente administrava um batalhão de pacientes para carregarem mesas, cadeiras, máquina de escrever e seus objetos pessoais de uma sombra a outra melhor, onde conversava animadamente, escrevia e se preparava para as fotos.
Na internação que testemunhei, apenas vi uma deliberada vivência com a loucura. Uma atração fatal de um sujeito que tem na sua vida a maior obra daqueles anos infelizes. Essas impressões eu guardo de quando ainda não era um profissional da área.

Hoje, estou convencido que muitos foram internos de manicômios sem um diagnóstico condizente. Os sobrantes, os párias, homossexuais,  mulheres traídas, herdeiros indesejados, discordantes do regime. Principalmente os pretos, pardos e pobres como observou Lima Barreto. Quem se debruçar um pouco na história da psiquiatria vai perceber isso.

Mas a pergunta que sempre me fazem é se Torquato não era “pelo menos” um depressivo. Sempre respondo que éramos uma geração depressiva. Os anos de chumbo pareciam nos sufocar em demasia e, naquela época, não víamos a luz no fim do túnel. E um suicídio pode mesclar uma depressão com uma determinação existencial filosófica e não necessariamente ser atribuída apenas a um mísero diagnóstico.


Como disse antes, conheci o Torquato maduro, que apesar da pouca idade tinha participado de um movimento decisivo e diluidor (em sua concepção) da música popular brasileira e dos costumes nas artes em geral; esteve com outros artistas na linha de frente na passeata dos cem mil e ficou exilado em Londres e Paris; teve uma coluna de opinião (sobre tudo palpitava) em um dos maiores jornais do país; experimentou cinema e as multilinguagens da poesia; viveu os limites da condição humana (em suas letras o “vou pra não voltar” é uma constante). Como não querer experimentar os limites da loucura repetindo voluntariamente Antonin Artaud de quem era leitor?

Torquato quis viver a contradição entre o fascínio e o horror que a loucura desperta na nossa alma, porque só ao ser humano ela é possível. Como mais uma faceta do seu estar no mundo, onde suas ações se confundem com a obra. Porque o seu comportamento frente a uma sociedade opressora, castradora e violenta dos anos de chumbo foram gerados para “desafinar o coro dos contentes”. Manso calmo e cordato, não era necessário o álcool para o pacato cidadão desagradar um consenso que achasse burro (então não botemos a culpa na droga e sim no homem). Não aguentava a burguesia idiotizada e de bem com o regime, mas também não suportava a “caretice” da esquerda – para usar um termo da época – e seu reacionarismo cultural (no que teve toda a razão que o futuro lhe reconheceu).

Depressivo, esquizofrênico (como já lhe chamou alguém), dependente químico, bipolar não são rótulos diagnósticos da psiquiatria nos quais se possam enquadrar o poeta triste. Depressivo se é quando se vive em uma sociedade sem futuro; somos vistos como esquizofrênicos quando não nos enquadramos em uma sociedade doente; a droga nos faz experimentar uma outra sensação quando o real não nos basta; bipolar quando temos que animar a moçada e chorar no ombro amigo.
Quem captou um possível diagnóstico cultural de Torquato foi Paulo Roberto Pires na organização fenomenal de Torquatália. Dois volumes de uma bipolaridade incrível. “Geleia Geral” – o apanhado da miscelânea jogada para fora na imprensa, na poesia, nas artes & manhas em alegria geral. “Do lado de dentro” – o poeta triste, reclamando no ombro dos amigos o que lamentava dos acontecimentos que o entristeciam.

Loucura? Como a de todo poeta e louco que habitam o humano. Em Torquato Neto rompendo o limite com que estamos acostumados. Mas não chamemos o que nos é estranho de loucura. Ou a loucura é um dos inumeráveis estados do ser, como queria Artaud e foi compreendida na percepção de Nise da Silveira.


Edmar Oliveira (Psiquiatra, militante da Luta Antimanicomial, escritor. Autor de “Ouvindo Vozes” (Vieira & Lent, Rio 2009) e “von Meduna” (Oficina da Palavra, Teresina, 2011) sobre a prática em Saúde Mental; e dos romances “Terra do Fogo” (Vieira & Lent, Rio, 2013) e “Sitiado” (Chiado Editora, Lisboa, 2017). Texto publicado originalmente na revista REVESTRÉS, número 33, novembro/17, dedicada a Torquato Neto.

22.10.18

campeador, Graça Vilhena


era maio na cidade
quando ele chegou de manso
ouviu o rio e as moças
que desciam em correnteza
pro seu peito sonhador

e campeou os desejos
com força de vencedor
sem esquecer a lição
que a terra seca ensinou

ah campeador, campeador
que tem por sina entender
o destino das palavras
e a mulher do seu querer

e nesse teresinar
cresceu o seu amanhã
onde cabem agasalhados
amigos que são irmãos.


Graça Vilhena
Poema-prefácio do livro
Pétalas, uma antologia poética, de Cineas Santos
Oficina da Palavra: Teresina, 2010

20.10.18

"marco zero ereto", Renata Flávia


marco zero ereto no caminho das pessoas que vão ao mercado. marco zero ereto inaugura o primeiro ato, entre tuas torres, entre tuas pernas, amparo! em plena praça da bandeira te atravessa, te fecunda ao meio. entorpecida em engano, ritual tântrico, cria a cidade mal nascida restaurada em sexo de pedra e devaneio. as flores que afogam as fontes do jardim, ontem foram tua beleza, amparo. ontem quando na última hora do dia marco zero em chamas derramou-se em casa e calor para povoar beira de rio, beira de sonho, beira de cama. é mentira que o amor tem encontro marcado. é mentira, amparo! que teus olhos virgens foram os primeiros a tocar este espaço. teresina treme. teresina em chamas. brilhantes purpurinas de sol no parnaíba. já existia, amparo. todas essas sinas. antes desse amor interessado já existia vida.


Renata Fláviaenviado pela autora (lustredecarne.zip.net)

Um Suspiro de Rock (doc), João Victor Rolim




Documentário sobre a cena de Rock em Teresina-PI na primeira década dos anos 2000. Explora o período através do ponto de vista de alguns artistas que fizeram parte daquela efervescência musical. 


Direção, roteiro e edição: João Victor Rolim
Orientação: Prof. Dr. Achylles Costa
Assistente de Produção: Mariana Campelo

19.10.18

Baião de Todos - Edição comemorativa de 20 anos, por Geraldo Borges



Há três opções para uma leitura da antologia "Baião de Todos", editada pela FUNDAPI, e organizada por Cineas Santos e Keula Araujo (Teresina - PI, 2016).

A primeira seria aleatoriamente, abrindo aqui e ali, uma página do autor que chamasse atenção do leitor, por simpatia, ou, mesmo, por preferência de estilo, titulo e tema; e saboreando ao seu bel prazer, até mesmo por que a antologia é um leque de várias cores temáticas, um mergulho nas profundezas da alma dos poetas na luta com a inspiração.

A segunda leitura seria a linear, quer dizer, a forma em que o livro foi montado. Ordem alfabética de A W, terminando com o William Soares, o consagrado poeta de nossa cidade e que vive levitando pelas ruas com o seus passos em câmara lenta.

A terceira leitura seria em ordem cronológica, o que poderia muito bem explicitar os estágios da poesia brasileira de expressão piauiense. Claro que esta leitura não é possível, já que a antologia não foi organizada em ordem cronológica. Mas, pensando bem, as sintéticas informações biográficas, em parte, ajudam bastante ao leitor que se propõe a estudar com mais empenho a nossa literatura.

Quanto a ilustração a capa do meu amigo Amaral é muito bonita. Uma revoada de pássaros. Poesia. Mas não reflete o miolo da antologia, que, no meu entender, é a contradição do novo na luta contra o antigo. A não ser que a revoada de passarinhos signifique um bando de poetas perplexos em sua cidade sitiada.

Quanto a qualidade da antologia Baião de Todos é um bom prato, pena não ter aparecido mais convidados. A gente ler e fica lambendo os beiços. Tem sabor para todos os paladares, os mais bizarros e esquisitos. Os poetas surpreendem, tanto os mais novos como os mais antigos. Uma das características dos poetas é cantar a sua terra. Celebrar a sua aldeia. E o que tem de sobra em Baião de Todos. Vejamos. Graça Vilhena:

"No mercado central
As verdureiras arranjavam
Buquês de cheiro verde"

Os exemplos são muitos, o leitor pode conferir no livro. Os poetas mais antigos falam de uma velha província, que jamais será restaurada a não ser na memória e imaginação dos poetas. Os poetas mais novos, que cresceram dentro de um cenário de uma cidade em transição, que se verticalizou em concreto, cantam sua cidade dentro de outro compasso. Uma cidade estilhaçada por contradições. Contradições bem colocadas como se pode ler nos versos de Lívia Maria;

"Amar é ter uma bicicleta
mesmo morando no terceiro andar
E sentir uma euforia quando tudo é cansaço"

Exemplar. A bicicleta é o novo instrumento da modernidade que terão de enfrentar os novos poetas do Baião de Todos. A maioria não acredita mais em musa, essa velha puta romântica. Por isso mesmo terão que pedalar muito e sentir euforia quando tudo é cansaço. Porque sem alegria e estudo não existe inspiração.


Geraldo Borges
Sobre "Baião de Todos",

Teresina 1990, por Nilo Martins




Imagens de Teresina - PI gravadas por Nilo Martins, em 1990.

16.10.18

Severo - Suor, Violento Precário (2018)





1. Ele tá jurado (vinheta)
2. Herança do Homem  00:23
3. Só chove sol (vinheta)
4. Quando a Lua Aparece  05:04
5. Trabalhador nunca se esconde no meio do povo (vinheta) 
6. Um Tipo de Mágica  08:53
7. Samambaia (vinheta)
8. Cajueiro Brabo, Maracujá Cabôco 14:20
9. Sacudir em Volta  18:34

Gravado no Estúdio Audmus, Teresina - PI , entre dezembro de 2017 e abril de 2018 (exceto voz, gravada em Blackroom Estúdio); Técnico responsável: Júnior Audmus
Mixado/Masterizado em Blackroom  Estúdio, São Luís - MA, Técnico responsável: Sandoval Filho

Produção Musical: Severo e Pedro Ben

Arranjos/
Guitarras: Pedro Ben
Baixo: Cauê de Lima
Bateria: Javé Montuchô (Um Tipo de Mágica), Nildo González ( Sacudir em Volta, Herança do Homem,  Cajueiro Brabo Maracujá Cabôco,  Quando a lua aparece)
Percussões: Arnaldo Boa Esperança
Piano/ Teclas: Sandoval Filho (Um Tipo de Mágica / Herança do homem)
Cuíca: Márcio Cuíca (Herança do homem)
Sax Tenor: Raniel Silva (Quando a lua aparece)

All lyrics composed from by Severo 

Toadas incidentais / vinhetas

*Ele tá jurado (Boi Estrela Dalva - PI)
*Ponto de Gira / Maresia  (domínio público)
*Samambaia (Toada de cabôco / Jayro Almeida Rodrigues. Oxóssi é Rei. Gravadora Cáritas (K7), 1985

Capa (web): Severo
Foto: Alexander Galvão
Tipografia: Philip Marinho
Arte da Capa: Pedro Leonardo

Avalanche ufológica em Teresina em 1969, Reinaldo Coutinho


O estado do Piauí, de baixa densidade demográfica (pouco mais de 12 hab/km²) e grande território (mais de 250.000 km²) sempre foi alvo de avistamentos ufológicos. A imprensa em si nunca registrou grande número de casos ao longo dos últimos 50 anos, em decorrência da deficiência de informações, distâncias, transportes e meios de comunicações. 

Consultando nossos arquivos, descobrimos, porém algo muito estranho. De maio a julho de 1969 houve uma série de avistamentos na própria capital, Teresina. Se forem consultados todos os jornais antigos do Piauí, em nenhum momento se achará quatro testemunhos em tempo tão restrito, cerca de dois meses. Também curioso é que dos quatro, dois foram na região central da cidade e dois deles, nas duas praças mais centrais da capital.

Senão vejamos. No dia 10 de maio de 1969 o jornal O DIA noticiava que o jovem estudante Marcelo Dante de Almeida Nunes conseguiu fotografar, na Praça Saraiva, no coração de Teresina, onde se localiza a igreja de Nossa Senhora das Dores, um estranho objeto, que posteriormente foi considerado um "disco-voador", que sobrevoava o local. Na época Marcelo contava com quinze anos e estudávamos juntos no Colégio Diocesano, em frente à praça onde ele presenciou e fotografou o fenômeno. 

Recordamo-nos dele como uma pessoa de grande inteligência, sempre muito irrequieto e interessado em mistérios da natureza e com uma predileção especial por dinossauros e vulcões. Em cultura e conhecimento puxou muito ao seu pai, professor Vespasiano Rubim Nunes, mestre de Direito de Trabalho em Salamanca (Espanha). Marcelo andava sempre com a máquina do pai e com ela flagrou o suposto OVNI. Consta que agentes do Ministério da Aeronáutica teria visitado a casa de nosso colega para obter maiores informações. 

Só voltamos a ver Marcelo Dante por volta de 1998, quando ambos prestávamos serviço à Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Piauí, ele como arquiteto, eu como geólogo. Mas nessa época eu não me lembrava mais do caso e consequentemente não toquei no assunto, embora ele tenha muitas vezes me falado que se dedicava à ufologia.

No dia 03 de junho de 1969 o jornal O DIA, de Teresina, noticiou que o contista Pedro Celestino de Barros, funcionário da Delegacia Regional do trabalho e professor do Ginásio Municipal, Eurípedes de Aguiar teria avistado um UFO (na época diziam Disco-Voador) uns três dias atrás, num sábado, às 19h40min, juntamente com a esposa e filhos. Na descrição dele era uma bela luz azulada, sobrevoando sua residência, na Rua Manoel Domingues, 1677. A família Barros refere-se ao objeto como pratos côncavos colados pelas bordas, com bojo saliente. O fato teria acontecido quando Pedro Celestino estava sentado na calçada de sua residência com a esposa Auri e os filhos Maria Ivonilde, então com 18 anos e Aluísio, então com 15 anos. Celestino declarou textualmente ao jornal O DIA, de Teresina-Piauí:

...e vejo um clarão enorme, grande foco luminoso azul diáfano, se deslocando rápido em direção oeste-leste, semelhante a dois pratos côncavos, colados pelas bordas, com bojo saliente. Todos ali levantaram a vista na mesma direção. Esperei pelo barulho, supondo que fosse avião. Nada! A esfera se deslocou rápida e sem barulho, quando todos gritamos: É o disco-voador!

No dia 07 de junho de 1969, o jornal O DIA, de Teresina, publicou que o vereador do antigo MDB Totó Barbosa (1919-2010), veterano e renomado fotógrafo, flagrou um "disco" sobrevoando o prédio onde ficava a sorveteria Bela Vista, na Praça Pedro II, a mais central da capital do Piauí, entre 17:00 e 17:30 horas. O filme teria sido revelado somente tempos depois, pelo que não teria ficado suficientemente nítido e contrastado, segundo o fotógrafo.

Totó Barbosa (acervo da família)

Revelado o filme, constatou-se que o "disco-voador" de Totó Barbosa era quase igual ao fotografado por Marcelo Dante no mês anterior. A única diferença era que o objeto fotografado pelo vereador não tinha a forma exata de dois pratos ligados pelas bordas.  Quem viveu em Teresina nos anos 1960 e 1960 necessariamente conheceu ou pelo menos ouviu falar de Totó Barbosa, um dos mais famosos fotógrafos do Estado e conhecida figura no meio social e político.

Na edição de 15/16 de junho de 1969 do Jornal O DIA, consta que o poeta Hermes Vieira (1911-2000) viu, numa noite do dia 10, cerca de 18 km da cidade de Teresina, nas matas do Baixão de Juá e Cipó, durante uma caçada, um clarão estranho e diferente. Disse Hermes que era uma "estrela" três vezes maior que a estrela Dalva. O objeto apagava e acendia, com cor branca muito viva. A testemunha não reconheceu a forma de "disco-voador", mas acrescentou que... era um objeto espantosamente belo e estranho!

São avistamentos praticamente esquecidos. Talvez outros no mesmo período não tenham sido registrados em jornais ou rádios da época. Porém algo de estranho se passou naquele período maio-junho-julho nos céus de Teresina, capital do Piauí.


Reinaldo Coutinho
"Desvendando o Piauí"

PROIBIDAS AS LUZES MODERNAS, Rodrigo M Leite


proibidas as luzes modernas

os bêbados sem dor

ao toque dos cadeados nos velhos portões
ao brilho do ferro antigo estacionado
ao beijo nos temperos do mercado

esfrego as mãos nos vestígios de tinta e cola com papel
[ressecados nos postes

singrar por uma cidade onde as ruínas ruminem
em 2015, inédito em livro

15.10.18

Dobalina, por Elias Paz e Silva



lembrança de curral
na tarde oval

feixe de palavras
sobre o verão de arder

ao sol seca o tempo

chove o silêncio
na cidade infante



Elias Paz e Silva
A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


TERESINA ANTIGA, A. Tito Filho


Nos festejos de São João acendiam-se inúmeras fogueiras e se enfeitavam as ruas de patis. Defronte do palácio do governo exibia-se o boi do Manoel Foguista. A cidade tinha mais casas de palha do que de telhas. Quase não havia muros nos terrenos, cercados de talos de buriti. Fabricavam-se cigarros de duas marcas: CONDOR e REI DE PAUS. Principais operários da fabricação: Antônio Cazé, Leônidas Carvalho e Domingos Ferreira. Fazedor de imagens de santos, Vitor. As quadrilhas nos bailes eram marcadas pelo funileiro Gervásio, de fraque. Fabricante de violão, Lourenço Queirós. BANDAS DE MÚSICA: a dos Almeidas, a do Azevedo, a de pau de corda, composta de violão, flauta e pandeiro, entre outros instrumentos, propriedade de Pedro Tonga. A professora de música Ana Bugyja Britto mantinha orquestra para tocar nas novenas e aniversários. As bandas da Polícia e do Exército exibiam-se nas retretas da praça Rio Branco, dividida em duas áreas, a da alta-roda, ou gente de PRIMEIRA, e  a de segunda classe: ÁGUA. Denominavam-se cargueiros os animais carregadores de água do rio para as residências, vendida de porta em porta. Pessoas ilustres apanhavam o precioso líquido no seus próprios animais. CAVALOS. O cidadão Boeiro, morador no Barracão, fundou uma escola para que os cavalos aprendessem a marchar, esquipar, trotar. Dia de domingo realizava-se corrida desses quadrúpedes do centro da cidade até a Catarina. Esporte dos ricos. Boeiro vendia fumo de corda. Homem de posses. Emprestava dinheiro até ao Estado em dificuldades. ARROZ. A primeira máquina de beneficiar arroz pertenceu ao cidadão Manoel da ria São José, hoje Félix Pacheco. Ainda trabalho se dava às pisadeiras, no pilão, iniciavam a tarefa pelas três da madrugada no bairro Vermelha. CABARÉS. Animados. Danças até de madrugada. Cada rapariga tinha sua alcova, com cama, rede, penteadeira. Serviço de bar. Mulheres sempre novas. Havia intercâmbio de prostitutas de São Luís, Fortaleza e Teresina. Principais lupanares: Rosa Branca, Raimundinha Leite, Gerusa, na década de trinta e quarenta. Famoso também o cabaré da Calu na Piçarra. No carnaval as meninas alugavam caminhão e participavam do corso pelas ruas da cidade. As mais aplaudidas pelos machacás. CINEMAS. Quando me entendi, eram 3 as casas exibidoras: Royal, para molecada, bancos de madeira, sem encosto, o "Olímpia", na praça Rio Branco, da elite. Muita elegância nas sessões dominicais. A princípio, fitas mudas acompanhadas de música por artistas da terra, e o Theatro 4 de Setembro, que inaugurou o cinema falado em Teresina, a partir de 1933. Depois surgiram o "Rex", o "São Raimundo", o "São Luís", o "Royal", segundo deste nome. Muito namoro em todos eles. Namoro forte. O Teatro e o "Olímpia" ofereciam, sábado e segunda-feira, respectivamente, entrada gratuitas as meninas da Escola Normal. Os gajos pagavam. Na escuridade das salas de projeção, nesses dias saudosos, vigorava a bolinação. Uma pouca vergonha, rapazes agarrados nos seios das garotas. Uma graça Teresina. Boa de viver. Inesquecível para os que a conheceram nas suas graças e atrativos.


via Jornal O DIA
em 04 de novembro de 1988

OS CARNAVAIS, A. Tito Filho


MONSENHOR JOAQUIM CHAVES escreveu que o carnaval teresinense até 1959 “era mui modesto e consistia quase que exclusivamente no entrudo” – o entrudo brutal, das bisnagas, que esguichavam água suja, vinagre e outros líquidos; os limões de cera, as cabacinhas, que se derramavam em roupas e cabeça. O entrudo era sujo e grosseiro: usavam-se nele até baldes, bacias e gamelas dágua de mistura com porcarias.

Em 1859 começou a desaparecer o entrudo. Houve o primeiro carnaval em Teresina. Fundou-se uma sociedade carnavalesca. Brincou-se de domingo a terça-feira. Bailes de máscaras no Teatro Santa Teresa. Desfile de música e cavalheiros mascarados pelas ruas. Rapazes já se fantasiavam de mulher.


1860 a 1862

Folguedos bem animados. Domingo, 19 de fevereiro, mascarados a cavalo e a pé percorreram a cidade. Na terça-feira, baile no Santa Teresa. Os anos seguintes, 1861 e 1862, não ofereceram novidade.


1863 a 1869

Local dos principais folguedos: lardo da Saraiva, hoje praça Saraiva. Muitas figuras grotescas percorriam as ruas, com bandas de música e foguetório.


1870

Surgiu a Sociedade União: quarenta sócios. Folguedos no domingo, 27 de fevereiro, praça Saraiva, 16 horas. Mesma hora, segunda-feira, na praça do Quartel. Primeiro de março, baile. Um grupo de 12 foliões andou pelas ruas, de calça, colete, paletó de brim branco e barrete verde.


1871 a 1892

Carnavais com rico sortimento de máscaras, gorros e bonés. Bailes e passeatas.


1893

Animadíssimos festejos. Apareceram dois clubes carnavalescos, que se saíram galhardamente.

CLUBE DOS FENIANOS. Realizou formidável zé-pereira. A cidade em peso prestigiou o baile de ricas fantasia, nas quais primava o outo, a seda e o veludo. Salões esplendorosos. Festa deslumbrante que durou até 2 da madrugada. Terça-feira gorda houve marcha triunfal pelas ruas: banda de música, corneteiros e tambores. Pelotão de cavalaria. Carros alegóricos. Mascarados. Uma carruagem de garotas fantasiadas. Depois do desfile, piquenique.

O outro clube, chamado Fênix, deu recepção ao Príncipe de Carnaval, em duas grandiosas marchas triunfais e um suntuoso baile.


1894

Pomposo programa do Clube do Fenianos. Dois grandes bailes, domingo e 3ª feira, ambos na Câmara dos Deputados. Entusiasmo inexcedível. fantasias ricas e deslumbrantes. Música ruidosa. Muito luxo e elegância. No primeiro baile, por exemplo, Dona Mundinha Rosa fantasiou-se de Aurora: vestido de seda cor-de-rosa, decotado, coberto de gaze branca estrelada. Rodas prateadas na fronte. Custoso diadema no alto da cabeça. Luvas de seda cor-de-rosa, bonito cinto, delicados sapatos prateados, meias de seda cor-de-rosa. estava acompanhadas das filhas Dedita e Déia. No segundo baile, apresentou-se de Cigana, saia de veludo carmesim, com larga barra de veludo preto. Enfeites dourados, preso por largo fio de ouro, com triângulos, chaves e compassos. Sapatos pretos, meias de seda encarnada.

Dona Sinhá Avelino compareceu no primeiro baile fantasiada de Água. Trajava vestido de cetim azul com larga barra de cetim branco, em que se viam pintados peixes e mariscos. Meio corpete com escamas douradas. Volta e pulseira de coral. Coroa de musgo e uma grande estrela-do-mar.


em OS CARNAVAIS DE TERESINA (1972)

O PARNAÍBA, Oliveira Neto


Águas turvas, imenso, vagaroso,
O Parnaíba desce para o mar.
Qual um molusco, lerdo, preguiçoso,
parece sem vontade de chegar!

Sereno, vai andando, majestoso,
o aguaceiro barrento a deslizar...
E nas margens um bando vaporoso
de garças cor de neve a esvoaçar...

Ó velho Parnaíba dos poetas!
O progresso mudou o teu destino
e te deu novas e importantes metas!

És portador de um mundo de esperanças...
E o povo do Nordeste canta o hino
do sonhado futuro de bonanças...


Oliveira Neto
em Ícaro (1951)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

SOLUÇÃO, Guardia


Quando um verso muito antigo de repente traz a tona nossa historia
Quando a tela numa noite dessas pinta em poucas cores nosso tempo atrás
Quando a chuva rala lava o chão de asfalto e a cidade iluminada respira

Quando a página do livro me confirma me relembra o que fomos
Quando as luzes do cinema com o tempo se confundem com os sonhos
Quando o riso largo vaza tento agarrar e sei que esse riso não é meu

Dente por dente        
rasgo o cartão postal
Olho no olho          
homem de pouca fé
Tudo desaba saio de casa assim          
o piso arranca toda a sola do pé
Olho por olho            
assisto um coração
Volto a perguntar            
onde haverá você?
Num rastro de sol sem luz pode ser
Na soma de meus azuis pode ser que sim pode ser

Espero e perco o bonde o trem o rumo a condução

Sigo em frente sinto que caminho fora do mundo por alguns segundos do cortejo
Volto pro chão tudo normal mas sempre encontro tempo pra tristeza
Aquela marca ficou na parede
Aí não tive chance de esquecer
Eu organizo nosso movimento
Dentro da lembrança
Aquela marca que desenha a trança
Parece bem mais viva do que eu, e digo
Um canto novo nasceu mas quem que vai cantar comigo?
Não tem solução

(...)

Canção do segundo LP da Guardia. Gravado entre 2014 e 2015 por Jan Pablo e Cavalcante Veras na Canis Vulgaris Records. Produzido por Jan Pablo e Cavalcante Veras. Mixado e Masterizado na Canis Vulgaris Records por Jan Pablo.


Guardia / Imperfei (2015)
Jan Pablo e Cavalcante Veras
Canis Vulgaris Records
Canal no Youtube

Não se Pode, por João Ferry



Quando eu era menino andava em voga
A história da "Não se Pode",
Uma mulher esguia, que de toga
Como um fantasma, à toa, de pagode
Altas horas da noite então vagava.

E quando alguém seu nome perguntava
Invariavelmente respondia,
Com a voz cava e cheia de agonia:
"Não se Pode!" "Não se Pode!"

Era um fantasma esquisito e feio
De estatura comum, mas que crescia
Toda vez que cigarros acendia
Nos lampiões das esquinas e do passeio.

Escaveirada, de carão ossudo,
olhos sem brilho, sem nenhum clarão,
A "Não se Pode" era um duende mudo
Alma penada pela solidão.

Soldados de patrulha da cidade
Uma noite entenderam de segui-la.
Mas a "Não se Pode", como um cão de fila,
Evitava qualquer intimidade.

Suas pegadas no chão jamais se viu

E do velho quartel para o mercado,
Seus pontos preferidos,
Era como um vulto malfadado
Dos mistérios do além, desconhecidos...

E quando uma noite fugia pelo espaço
"Não se Pode" também no seu regaço
Em fumaças de pós se desfazia...

A minha alma também é assim
Se alguém sacode
Os sofrimentos que meu peito esconde
Pressurosa e bem triste ela responde:
"Não se Pode!" "Não se Pode!"



João Ferry
em Chapada do Corisco (1952)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


Entrevista com o poeta Carvalho Neto, por Elias Paz e Silva



João Ribeiro de CARVALHO NETO nasceu em Amarante (PI), em setembro de 1944. Estudou em Teresina, São Luís, Salvador e Fortaleza, participou do movimento estudantil e graduou-se em Odontologia na Universidade Federal do Ceará.

Funcionário público, reside em Teresina (PI) onde trabalha no Programa Saúde da Família.

É autor dos livros: Variantes do Berro (1978); Arquitetura do Ser (1982); Da Oportuna Claridade (1997); no prelo Remansos (2008).

Participou das antologias: Baião de Todos – Editora Corisco (PI); Visão Histórica da Literatura Piauiense – Herculano Moraes; Nordestes – Fundação Joaquim Nabuco (Recife – PE); Antologia Poética – Projeto Mão Dupla (PI-CE); A Poesia Piauiense no Século XX – Assis Brasil.


Entrevista com o poeta Carvalho Neto

Elias Paz e Silva – Como nasceu o “poeta” em ti? Em que momento “houve luz”?
Carvalho Neto – Quando entendi que ao ser escolhido pela poesia, a eterna linguagem do mundo, o ser poeta significava compartir. Fiat lux!

EPS – Testemunha e participante ativo da militância estudantil nos “anos de chumbo”, o que nos tem a contar à nossa geração?
CN – Que a educação é fundamental na formação de uma sociedade livre e democrática.

EPS – Você já se libertou dos fulgores da década explosiva de 60 ou relâmpagos de sonhos ainda reverberam agora, depois dos 60 anos?
CN – há que se falar da aurora
da minha
da tua vida.

EPS – Como se dá o seu processo criativo, como nasce a poesia em ti?
CN – Só escrevo quando tenho vontade. Para mim é importante o gesto, o ser-em-si, meu quintal.

EPS - Companheiro-amigo de Torquato (Neto) na adolescência, o que nos tem a testemunhar do agora nome de Campus Universitário?
CN – Devo ao Torquato o gosto pela poesia, quando apresentou-me versos de Vinícius de Moraes. Ícone do movimento tropicalista, merece a homenagem. Poetar é correr o risco (Torquato Neto).

EPS – Você diz mais em prosa ou verso?
CN – Um dedo de prosa
O verso é meu universo.

EPS – De “Variantes do Berro” (1978) até “Alegoria” (2008), o que permanece, esteticamente, no Homem-Poeta e qual o fio de continuidade ou ruptura em sua poesia?
CN – O espaçamento entre livros é grande porque produzo pouco. A gente renasce em cada livro, portanto não há ruptura. Há sim, hiatos de agonia.

EPS – Entredentes, é bom desafinar o coro dos tristes? Ou você não rima poesia com alegria?
CN – uns fazem versos na argila
outros no aço
eu me satisfaço
em fazer versos sem cor
se é que faço
está na flor?
na tua boca
no teu delírio...
como posso
se já é um martírio esse morrer de amor?

EPS – Qual o maior (ou os maiores) presente que a vida-poesia lhe deu?
CN – O de poder mergulhar no universo interior abrindo trilhas para a sensibilidade, respeito às diferenças, musicalidade e principalmente para liberdade.

EPS - Dono de um estilo singular, reconhecidamente bem elaborado, de ti se pode dizer “o estilo é o homem”?
CN – Segundo Graciliano Ramos, estilo é o jeito. Concordo.

EPS – Ex-boêmio, líder estudantil, bêbado de sonho, dentista, pai de família, como conciliar o estro artístico com a ética humanista?
CN - Procurando ser transparente, ético, com compromisso social.

EPS – Leitor de clássicos da literatura rebelde sessentista, o que você diz ao leitor atual e à geração de leitores do futuro?
CN – dos corredores do tempo
saí batido, deserto, verdadeiro.
ansioso
digo para mim
em verso quase inteiro
confesso
faria tudo de novo.



Entrevista realizada por Elias Paz e Silva

Publicada originalmente em Overmundo

meu coração é vazante de rio, Carvalho Neto


lágrimas de Deus ou do diabo
correm nesse rosto argiloso
nesga de sofrimento
peixe e farinha
campos, luas, sumidouros
ninguém vai sofrear meu coração
quando na invernia da memória
eu ouvir a rapsódia amarantina
porque meu coração é vazante de rio
onde plantaram dois alqueires de medo
dez de solidão
sob a verdura das levadas estarei
mansamente louco
porosamente outonal.


Carvalho Neto
Em "Da Oportuna Claridade",
Zodíaco: Teresina, 1997

BR-O-BRÓS, William Melo Soares


rio morno
assoreado
lâmina
d'água
à flor da areia

jorram
da boca do esgoto
as impurezas
das gentes

o sol
nos br-o-brós
é um dragão
inclemente


William Melo Soares
em Nadança dos Peixes - Antologia Provisória
Teresina: Bienal, 2015

Palha de Arroz, Capítulo XXXIX, Fontes Ibiapina


XXXIX

Sobre a ponte metálica do Parnaíba Velho. Os dois guardas ali de lado. Iam com ele até a estação de Timon.

— (Timon... origem grega. Genitivo plural – plural – das honras. Honras de quê?! De quem?!... Diabo, pra que estudei?!...)

Aí pau de Fumo sentiu que se era de um sapo viver chorando de fome ouvindo a sapa velha e seus sapinhos chorando de fome a vida toda, melhor morrer. E o melhor lugar era aquele. Também a hora era oportuna, que o dia não havia ainda amanhecido. Ali nas águas, ele se transformaria num sapo de verdade. E ficaria chorando com os sapos de verdade, esperando um Natal cheio de luzes, para todos os sapos do mundo cantarem de barriga cheia.

Fechou os olhos. Fez de conta que ali era o Poço da Usina. E fez de conta que os dois guardas que estavam ali a seu lado – armados até os dentes – perseguiam-no numa carreira maluca e desatinada. Aterrou os pés e correu. E, da prancha entre os dois vagões, gritou:

— Filhos duma puta!


em Palha de Arroz, 
Teresina: Oficina da Palavra, 2004, 4ª edição

RUBRO SOBRE O VERDE ou SANGUE ENTRE DOIS RIOS QUE SE ABRAÇAM ou CONTO EM CINCO DESATINOS E UM ESBOÇO DE EDITORIAL, um conto de Airton Sampaio


1
LUCRECIUS

Quando se despediram, há bem uma hora já havia apitado a Usina. Conversaram, na calçada do sobrado, em cadeiras de vime e espaldar, desde a boca da noite. A visita morava a poucas quadras dali, para onde se dirigiu, a passo pequeno, após efusivo abraço no amigo, sob a luz leve da lua o paletó e a gravata brancos alinhados, o chapéu de feltro também branco e importado, a bengala refinada, um mimo da neta.
Contava então Therezina, nesses idos de 1927, com não mais de 60 mil almas, e chamavam a atenção os seus quintais e o verde de seus quintais e suas igrejas imponentes, como a de São Benedito, no Alto da Jurubeba, ali ao lado do Morro da Moderação, e a do Amparo, na Praça da Bandeira, mais adiante, a oeste de quem de costas está para o norte, como sentados estavam os amigos, em agradável interlóquio.
- Sem as circunstâncias da política, a cidade teria permanecido como Vila Nova do Poti, mas, sendo decisivo o apoio do imperador para a mudança da capital de Oeiras para cá, era preciso beijar, e se beijou, a mão à imperatriz.
- Ainda bem que bonito, o diminutivo de Teresa.
- Bonito também se Therezina anagrama de Thereza Cristina for.            

Naquela noite de ausentes estrelas e pouca lua não mais se via um pé de cristão. A Usina já apitara, por assim dizer, o toque de recolher. O juiz, no andar de cima, metera-se em seu camisolão de dormir e nem ainda se deitara ouve batidas fortes, e muitas, na porta.
 
- Vai ver ele esqueceu alguma coisa.
Assim pensando, e dizendo já vai, já vai, já vai, desceu a escada, tirou a taramela de segurança da porta e eis que um homem de capote preto, aba do chapéu preto caído sobre o rosto, diz-lhe algo e desfere a primeira facada, depois a segunda, e a terceira, e outra, e mais outra, e outra. Na parede, escrito ficou, com sangue e letra trêmula, uma sílaba com duas vogais, que logo se deduziu ser parte do nome do mandante, que fizera questão de se dar a conhecer à vítima pela boca mesma do assassino ou pronunciado fora o nome para desviar a atenção do verdadeiro autor intelectual e incriminar a outrem? Teria sido a morte do juiz crime de política ou acerto de contas por decisão judicial intragada? Ou a ambição e a inveja seriam o móvel de tanto sangue no sobrado do Alto da Moderação?
Therezina especulava no Café, nos bares, nos cabarés, nas ruas, nas praças, nas casas, nas feiras, nos festejos, nas tertúlias, na imprensa, em livros... Certeza só a de que o executor, fosse quem fosse, não passava de um pé de chinelo, e o mandante, fosse quem fosse, era um potentado. Ali perto, uma igreja, erguida, no Morro da Jurubeba, pelo suor do povo miúdo, detinha toda a verdade, pois de sua torre alta, que espiava as cercanias, testemunhara tudo, porém emudeceu, embora as prisões, embora o suposto homem de capote preto tenha declarado, em depoimento, o nome de um militar. Não seria isso mais uma manobra diversionista? Ou falava mesmo a verdade o pistoleiro?

Mistérios de Therezina, que continuaram em Terezina e vigem, ainda, em Teresina. Quem, enfim, mandou matar o juiz federal? Ó anagramática cidade! Ó elites entrerrienses! Ó histórias mal contadas! Que véus são esses que estendes do Parnaíba ao Poti sobre os fatos de sangue desse lugar mesopotâmico também tido por chapada e pleno de sol, coriscos, trovões e impunidades?


2
THEATRO

Isso se perguntava o homem que acaba de entrar no condomínio onde mora e que para seu ap, no quarto andar, sobe as escadas mais apressado do que quando à rua, que mesmo com tanto assalto teimava por caminhar depois das dez da noite.
- Uma forma, essa minha, de parir ideias que me vêm, o dia todo, engravidar a mente.
- Elevador?
- Nem pensar...  

Uma vez na escrivaninha, diante de si o papel, há dias em branco. Escreveu, no alto, e sublinhou: O Carteiro e a Ditadura. Era o título! Ato contínuo, digitou: “Naquela noite therezinense, quando Elzano foi para o encontro no costumeiro bar, não atinava que se dirigia para a morte e abandonado lhe seria o corpo todo mutilado dentro de um porta-malas de um conhecido carro”. Enfim, a frase de abertura! Agora, era tecer os diálogos ocorridos dentro da madrugada rubra e o conto, pode-se bem dizer, nascia. O fecho, aliás, já o tinha escrito, ao pé da página: “De onde não havia mistério a polícia, agindo às avessas, criara um, lançando um véu sobre o que desvelado estava. Sanha, e sina, de Therezina, isso”.

- Você vai parar de dizer que matou ele.
- Como assim, senhor secretário?
- Você vai parar com essa história de que foi você quem matou.
- Mas foi.
- Se aferre nessa versão que agora lhe dou e tudo ficará como dantes no quartel de Abrantes.


3
CHUVA!

Chuva! Chuva nos Cajueiros! Esse grito medonho e o badalo dos sinos das igrejas anunciavam, na Therezina do Estado Novo, o horror: gente correndo em desatino, pessoas se consumindo em chamas para tentar salvar alguém ou alguma coisa de dentro das casas de palha, que crepitam, aos montes, às vezes cem de uma vez, geralmente ao sol do meio-dia.

- Eu não taquei fogo em nada não, seu delegado.
- Deixe de conversa mole, ora.
- Sou inocente, seu delegado.
- É? Vamos ver se é macho mesmo é lá nas Ilhotas.
- Delegado, me tire daqui, que não fiz nada não, juro por Deus.
- Diga que foram esses aqui que mandaram o senhor tocar fogo nas casas e vamos ver o que podemos fazer.
- Não fui eu, seu delegado, eu não queimei nada.
- Enquanto não confessar vai ficar assim, o corpo enterrado de pé, só a cabeça de fora, neste solzão de outubro, e sem comer nem beber.
- Não sou incendiário, delegado.
- Mas eu, seu Luiz Enfermeiro, eu sou chefe de polícia e farei com o senhor o que bem quiser, entendeu?
Coisas, esses incêndios, de quem queria baratear ainda mais os terrenos dos pobres para comprá-los por pechincha? Atos malvados da Oposição, como dizia o Governo? Atos cruéis do Governo, como dizia a Oposição? No meio do terror, o povo chamuscava, perdia tudo, desesperava. A Igreja quase nunca passava do badalar dos sinos, os jornais em geral calavam, os escritores só um, o Vítor Gonçalves Neto, escreveu Santa Luzia dos Cajueiros, novela que num porre extraviou, mas da qual veio Fogo, o conto.
“Continua indecifrado o enigma dos incêndios de casas de palha que há muitos anos flagelam a pobreza de Teresina”. Isso disse, em O Piauí, em 13 nov 1946, o udenista Eurípides de Aguiar, presidente do Estado de 1916 a 1920. O que diziam, então, os pessedistas de Leônidas Mello, interventor do Piauí de 1937 a 1945, é fácil imaginar. Ó Neros! Ó Herodes!
- Durante a semana, retire os meninos e as coisas, que vai ter chuva.
- Obrigado, meu irmão, por avisar.
- Mas saia discretamente, para não espantar os outros.
- Mas eles vão se tostar...
- Avisei você, correndo todos os riscos, porque é sangue do meu sangue. Agora, se quiser se queimar na chuva com eles, Deus seja contigo. Vai ter um temporal dos diabos aqui na Vermelha!
- Tá bem. Eu e os meninos vamos sair hoje mesmo.
- Isso. Mas sem dar na vista, entendeu? Ou eu é que me lasco todo.
“Sabe-se com certeza que Feitosa, um pobre lavrador, morreu de pancadas e diz-se que alguns outros infelizes, assassinados pelos verdugos policiais, foram sepultados às escondidos na quinta das Ilhotas e nas matas da Tabuleta. Muitas vítimas tiveram ossos quebrados, articulações luxadas ou ficaram loucas, inutilizadas para o resto da vida.”
Sim, entre 1941 e 1947 Therezina esturricava,

(Fogo na Feira de Amostra!
Chuva na Catarina!
Temporal na Tabuleta!)

sob terror, arbítrio, monstruosidades... Quem mandava queimar os casebres? Therezina especulava, à boca pequena, no Café, nos bares, nas feiras, nas igrejas, nos festejos... Ó homens, que hoje dormem! De que lhes valeu acender e lançar nas palhas pobrérrimas as baganas de Odeon?


4
À MERCÊ

deles está você, Mercês.
Eu vi ele saindo do quarto da patroa, mas ele não viu que eu vi ele.
Eles são perigosos, Mercês.
Ainda a história que ele torturou gente?
Torturou, Mercês.
Mas ele não viu que eu vi ele.
Vamos embora, Mercês.
Ô xente, homem, deixe de aperreio.

No jardim da casa faustosa era manhãzinha quando o leiteiro deu com o corpo coberto de sangue, retalhado como a um porco. As manchetes iniciais viraram títulos de página, os títulos de página se tornaram tópicos de coluna, os tópicos de coluna... Véu! Ó véu que lançam do Parnaíba ao Poti sobre ti, ó verde Mesopotâmia rubra! Ó Macondo sertaneja! À mercê desses facínoras estou, estás, estamos?


5
H. F. / D. A.

PISTOLEIROS EXECUTAM JORNALISTA EM CASA!
JORNALISTA ASSASSINADO DENTRO DE CASA!
PISTOLEIROS INVADEM CASA E MATAM JORNALISTA!

JORNALISTA ESPANCADO E FUZILADO NA MADRUGADA!
ASSASSINADO JORNALISTA PARANAENSE!
JORNALISTA MORREU E NÃO VIU TUDO!

PRESOS PELA MORTE DE JORNALISTA OBTÊM HABEAS CORPUS
SOLTO ACUSADO DE MANDANTE DO CRIME CONTRA JORNALISTA
STF ANULA PRONÚNCIA DE MANDANTE DO CRIME CONTRA JORNALISTA


EDITORIAL

Quem Manda Avermelhar o Verde?
Começamos este Editorial explicando que Teresina é Therezina e Theresina.  Há a Therezina que, desde o encontro do Poti e do Parnaíba, segue entre rios até mais ou menos a Tabuleta, depois do que emerge, ainda entre rios, Theresina. Já Teresina fica, digamos assim, a leste e sudeste, após o Poti, não mais entre rios, porém um apêndice mesopotâmico e ainda assim o lar, expandido, do Cabeça de Cuia, da Não Se Pode, de inofensivos loucos como o Jaime, o Avião, a Nicinha, o Espiga, a Porca Ruiva, e de poderosos ensandecidos que tocavam fogo nas casas dos pobres, empastelavam jornais e mandam matar, porque impunes se sabem, quem lhes incomoda ou, simplesmente,  antipatizam.
É linda e verde Teresina, mas. Não raro se tinge de rubro esse verde que se esvai porque era ele, disse-o bem o Poeta, era ele um verde de quintais, que desaparece(m) sob prédios que arranham o céu. Menos o vermelho sobre o verde que resta. Quem, afinal, manda tingir de rubro o verde que queremos verde? A resposta todos sabem, menos, é claro, a Polícia e a Justiça...


Airton Sampaio
via blogue do autor