29.1.16

GARAPEIRA ESTUDANTINA, José Ribamar Garcia


                                                                     "Filomena cadê o meu / Filomena cadê o meu
                                                                     O meu beijo gostoso / Que você prometeu."


A letra dessa canção, tocada na amplificadora instalada em frente à Merenda, tinha esse refrão, que papai acompanhava num assovio quase inaudível. E, quando não havia freguês, ele ficava na porta da garapeira, com a mão esquerda apoiada no portal e o corpo um pouco inclinado, relaxado, apreciando o movimento da rua, que chamava de cinema. Dali observava também o filho, que se distraía no velocípede, circulando o quarteirão. Este velocípede fora um presente ao menino por ter tomado uma série de injeções sem fazer escândalo. Palavra sua era honrada, custasse o que custasse.

- Macho, mesmo, o meu filho!

A sabedoria: louvar as boas ações e rebater as más no momento exato, de forma que não ficasse na criança qualquer dúvida ou sentimento de injustiça.

A penúltima casa comercial a desaparecer naquele trecho da Rua Coelho Neto. Sobreviveu por duas décadas, o suficiente para marcar presença na vida da cidade. A Casa Carvalho na esquina, depois ela - Guarapeira Estudantina -, o Cine São José, outra garapeira, que não chegou a ser sua concorrente, tendo logo fechado as portas, e a farmácia Botica do Povo no fim da quadra. Do outro lado da rua, a Rádio Difusora, onde, aos domingos pela manhã, havia um programa de auditório com o animador Rodrigues, apresentando cantores, calouros e distribuindo prêmios. Uma espécie de Silvio Santos piauiense. A Merenda, misto de bar e lanchonete, vendia uns pastéis quentinhos, saborosos, e uma abacatada forte, gostosa. A amplificadora ficava à sua porta, no alto dum poste, repercutindo as músicas tocadas na vitrola (havia dezenas delas pela cidade). No Cine São José, o porteiro me deixava entrar de graça, mas não entendia nada do filme, devido à pouca idade. E não me aquietava, saía a todo instante para contar a papai o que via na tela. Em seu lugar surgiria o armazém, também São José.

O prédio era simples, comum, espaçoso, com duas portas de entrada. E o nome garapeira estudantina escrito à tinta na fachada. O balcão em forma de "L". Ao entrar, se via tudo: a prateleira tomando a parede de ponta a ponta, a engenhoca, montada sobre um tripé de ferro fixado ao chão, bem visível para que o freguês visse o caldo descer fresquinho das moendas, que um dia triturou o dedo indicador do proprietário, deixando-lhe a marca eterna.

- Quantos dedos eu tenho nesta mão (a direita)? - perguntava ao filho.

- Quatro e meio.

E ele ria, com aquele riso franco. Seguindo, um armário pequeno, onde se guardavam documentos e o revólver, Smith and Wesson, calibre 32. O depósito de pães, comprado na padaria da Praça do Liceu. Tudo limpo, asseado. Daí o sucesso com a freguesia, vasta, variada. A casa continuava para os fundo, com outros compartimentos, destinados ao armazenamento da cana-de-açúcar. Ao lado, o terreno vazio, usado para a guarda o bagaço e, também, para o plantio de mamoeiro. O frutos eram colhidos de vez, cortados nas extremidades e riscado em vertical para escoar o leite. Assim, amadureciam sem amargume. Amadurecidos, eram expostos, à venda, sobre o balcão. Outra fonte de receita, afora a do vinagre. Este preparado da cana estragada, após um processamento simples, mas demorado, que despendia dias e requeria paciência. 

A cana era entregue na porta, trazida por velhos caminhões. Nem sempre havia fornecimento regular deste produto. Em alguns meses do ano, escasseava, chegando a faltar. Era um tormento, pois, sem ele, não tinha como trabalhar. E, para evitar a a paralisação, papai corria o interior, em longas e exaustivas viagens, a fim de comprar diretamente do produtor, que, nessas circunstâncias, cobrava acima do normal. O custo saía mais caro ainda por causa do frete. Enquanto isso, para não se parar, vendia-se refresco de abacaxi ou de coco. Mesmo assim, a demanda diminuía porque o pessoal preferia mesmo era o caldo de cana. Gelado, natural (sem gelo) ou misturado, ingerido com pão, massa grossa ou fina. Era um lanche barato, nutritivo. Diziam, inclusive, que servia para aumentar o leite materno de quem amamentava, assim como para se certificar da cura da blenorragia, pois, se após um copo de garapa não descesse mais o líquido, era porque se estava definitivamente curado. Se isso tinha base científica ou não, é outro assunto. A crença havia.

O seu dia começava cedo. Abriam-se as portas às seis da manhã, antes já se tendo apanhado os pães na padaria. O empregado chegava às sete, indo buscar o gelo na fábrica da beira do rio de propriedade do Sr. Joaquim Nelson. Trazia duas barras, que eram serradas em pedaços colocados num recipiente que os conservava por todo o expediente, encerrado às nove da noite, quando se lavava a casa. A cana, antes de ser moída, era raspada.

Sábado era o dia das esmolas. E aparecia pedinte de todos os cantos. Formavam até fila que dobrava a esquina da Casa Carvalho. Cada um ganhava uma caneca cheia de garapa e um pão. A maioria já conhecida. Dentre eles, estava sempre o "Doutor", mais débil mental que mendigo. Tinha mania de ler anúncios, o que fazia de maneira engraçada, soletrando pausadamente cada sílaba.

Pedia-se para que lesse, e ele não se fazia de rogado. Olhava os cartazes pregados nas paredes e caprichava: "bri-lhan-ti-na Glos-to-ra, Bi-o-tô-ni-co Fon-tou-ra". Pobre "Doutor", tão manso, tão inofensivo, tão idiota. 

Na verdade, o fim da Garapeira Estudantina começou com a doença de papai. Bastou que este adoecesse para que ela entrasse em decadência. A freguesia foi sumindo aos poucos. E o novo proprietário, ignorando os segredos do negócio, não pôde evitar a sua queda. O fechamento de suas portas foi, sem dúvida, o final de uma época naquele trecho da cidade.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

ESTIGMAS, Carvalho Neto




devolva
meus sapatos rotos
que já não tenho estradas sem fim.

devolva o ciclo dos ventos
onde jovens valsavam suas esperanças
e risos
ao sabor das águas e dos mitos
flores de beira rio.

devolva as escrituras
não as do mar morto
as gravadas na cerâmica
bela e frágil
do poti velho.

devolva o princípio mágico
o verbo, o poema.



Carvalho Neto
em REVISTA PRESENÇA
Ano XXI, número 35, Teresina, 2006

EVOCAÇÕES, Lucídio Freitas


I


Como é bom recordar... Lembrando, a gente
Como num sonho de ouro se ilumina.
Recordação é fonte, alta e divina,
De onde brota o consolo do presente...

Recordar... reviver o que a neblina
Do tempo encheu de névoas, de repente...
Voltar atrás, rever, serenamente,
A alma e a cinza de um bem que não termina...

Como é bom recordar! Prolonga a vida
Vivendo os dias mortos, revivendo
Nas sombras outra sombra ainda querida...

Recordo. O pensamento esvoaça, a esmo.
Recordo, e recordando é que eu vou tendo
A infinita consciência de mim mesmo...



Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

28.1.16

CARTÃO POSTAL 80, Chico Castro




Espirrei:
Lixo da mais pura aspirina.
Sou:
De papel passado em cartório,
que tal?

Um homem urbanizado
entre prédios, luzes e avenidas
carros-galos
som sobre som sobre sonho
ufa:
não me ouço mais
nem gritando comigo mesmo.



Chico Castro
em O Livro da Carona 
Teresina: Edição do autor, 1994

IMPRESSÕES DE VIAGEM, Edmar Oliveira


Uma amiga perguntou pelo Piauinauta, que não sai há quase um mês, e eu falei que estava enrolado com o lançamento do meu TERRA DO FOGO em Teresina e que tinha de ficar lá por uns dez dias. Ela então falou: “sei, você está de licença paternidade”. Acertou assim.

Cheguei para o “Sarau dos Amigos do Cineas” na Oficina da Palavra, onde o livro foi muito bem recebido. Passei toda a semana indo ao stand do Leonardo, que tem editado livros de escritores da terra (muito bem caprichados), autografando o TERRA DO FOGO, que por sinal esgotou o estoque de lançamento. Eu e Salgado Maranhão fizemos um bate-papo literário discutindo o meu livro e o dele (MAPA DA TRIBO) para uma plateia de cinquenta a sessenta pessoas às oito horas da manhã, o que me surpreendeu. Geraldo Borges estava lançando ESTAÇÃO TERESINA anunciado aqui no Piauinauta anterior.

Boas conversas com Paulo Tabatinga, Gisleno Feitosa, Rodrigo M Leite, Durvalino Couto, Feliciano Bezerra, Wellington Soares, Cineas Santos, Graça Vilhena, Paulo Vilhena, João Carvalho, Fonseca Neto, Alexandre Carvalho, Gilson Caland, Climério Ferreira e  Helô, Keula Araújo, Luana Miranda, Poeta Willian, a muito jovem e bonita escritora Fran Lima, Deusdeth Nunes e a turma do Conciliábulo, entre tantos outros que tive por bem encontrar. Fui entrevistado por várias emissoras de rádios que cobriam o evento, entre elas a de Marcos de Oliveira e a de Leide Sousa. E ainda deu tempo gravar um depoimento sobre o cinema marginal dos anos 70 para Patrícia Kelly e Morgana, que fazem um documentário como monografia do curso de história e jornalismo. As meninas são brilhantes. E eu estou tão velho que virei pesquisa. Mas é bom ser reconhecido.

Tinha tudo pra ficar contente. Mas não fiquei.

Me hospedei no Hotel Central, em frente ao Clube dos Diários, ao lado da Praça Pedro II e seu Teatro 4 de Setembro, complexo que foi outrora o centro pulsante e cultural da cidade. Após cinco dias fui para a casa do meu irmão Maioba angustiado pela solidão. A cidade entre os dois rios, que se estendia do encontro de suas águas no Poty Velho até a Vermelha (citada no filme genial do Torquato Neto) não existe mais. Foi definitivamente abandonada por seus habitantes que atravessaram o Rio Poty e ergueram uma cidade moderna na zona Leste. Mas que não tem nenhuma lembrança da minha cidade.

A minha cidade é uma cidade fantasma. Os poucos e pobres habitantes que ali ficaram não saem de noite nas suas ruas escuras com medo de assalto. Trancam-se em suas casas. Os de mais posses fazem cercas elétricas para protegerem a sua solidão. As ruas foram entregues ao drogados, aos desocupados que ocupam uma cidade sem lei e sem ordem. Em suas ruas desertas, mesmo ao meio dia, encontrei duas pessoas usando drogas. Não senti qualquer medo. Eram pessoas que eu conhecia da minha infância naquelas, outrora, ruas agitadas. Agora estavam os dois usando drogas numa cidade trancada com medo deles. Esquisito. Conversamos sem medo entre nós. Eu não me senti ameaçado por eles. Fiquei com pena de a cidade os terem tragado pela fumaça de um inexistente futuro.

Sem querer contrariar os meus anfitriões do Salão do Livro do Piauí (SALIPI), até entendo os seus motivos de o terem tirado da Praça Pedro II para que acontecesse este ano na Universidade Federal, que também fica na Zona Leste da nova cidade. Mas não concordo.

Desculpem, mas penso que a cultura abandonou também a cidade antiga. Não digo que ficou elitista porque a Universidade pública congrega estudantes de todas as classes. Mais ainda com o sistema de cotas. Mas acho que a cultura abandonou também a cidade antiga. É preciso que analisemos este fato mais devagar. Não vou fazer agora.

No livro que em Teresina fui lançar conto uma história triste que a cidade tinha esquecido. Os incêndios dos anos 1940. Acho que em breve um cronista vai contar essa história, também muito triste, do abandono da cidade antiga. A impressão que eu tive, e que me encheu de tristeza, é que ela não mais existe. E uma cidade sem passado é uma cidade sem futuro. 


em 15 de junho de 2014
em Piauinauta

UM ESTRANHO EM TERESINA, Cunha e Silva Filho




Estive há pouco em Teresina e desta feita me achei um peixe realmente fora d’água, um estranho no ninho. Não que o desejasse, mas a culpa, leitor, é unicamente minha. Quem manda não a ter frequentado mais amiúde.

Da janela do hotel, lá fora, dava uma espiada para o que poderia ver que valesse a minha atenção ou curiosidade. Pois não é que procurei e achei. Era a visão de uma mulher, em plena tarde de um sol escaldante, caminhando, caminhando, caminhando, debaixo de uma sombrinha. Claro que não foi só aquela mulher que portava uma sombrinha para abrigar-se do sol abrasante. Não me lembro de outras vezes que andei por Teresina de reparar nesse costume local, aliás, bem justo e necessário, de usar uma sombrinha contra o rigor solar. Esse hábito me parece ser apenas feminino, já que não vira nenhum homem utilizando um guarda-sol.

Aqui no Rio de Janeiro, usar uma sombrinha ou guarda-chuva, em pleno calorão, não é comum como na “Cidade Verde”. Lá é hábito; aqui, é exceção, chega mesmo a ser constrangimento para quem dele faz uso com receio de se ver vítima de um gaiato qualquer perguntar-nos se está por acaso chovendo. O carioca sofre, mas não abre o guarda-sol. “Os cariocas somos pouco dados” aos guarda-chuvas, ou chapéu de sol ou muito menos a uma sombrinha, para nos intrometermos, sem sermos chamados, no labiríntico intertexto machadiano.

Das últimas vezes que fui a Teresina não me passava pela cabeça um persistente temor de violência. Não me queira por isso na conta dos paranoicos, dessas criaturas que, nas grandes cidades, passam a ter medo de tudo diante da disparada da violência dos últimos anos.

Confesso-lhe, leitor, porém, que, em Teresina, só andei mais em carro particular que, no meu caso, era do meu amigo, o ensaísta M. Paulo Nunes, de sorte que não me expus à sanha de algum pivete ou assaltante.

Num final de manhã, notei que, no hotel, não dispunha de papel para escrever, nem de caneta; a que trouxera comigo na viagem se perdeu não sei onde. Lá fui às ruas de Teresina. Algumas delas eu conhecia de priscas eras. Com o tempo, a gente perde um certo traquejo de andar por ruas de nossa cidade. Entretanto, o “eu” do presente era outro, e as ruas, à altura em que as podia identificar, não ficavam em trechos por mim palmilhados com assiduidade no passado.

Mesmo assim, criei coragem e, vendo o nome de uma rua e de outra, alguma, conhecida, outra, não, fui dar na bela Av. Frei Serafim, que divide dois lados de parte da cidade. Indaguei aqui, ali e, por fim, consegui encontrar uma papelaria. Comprei um caderninho escolar de poucas folhas e uma caneta azul. Lembrei-me, então, que teria que comprar um exemplar da edição daquele dia do jornal Meio-Norte. No hotel, depois do café, já havia passado uma vista no exemplar que me interessava, aquele no qual havia uma reportagem sobre mim a propósito de conferência que iria fazer na Academia Piauiense de Letras. A reportagem tinha sido feita no dia anterior por ocasião do lançamento, no Museu Odilon Nunes, de mais um número da excelente revista Presença, com apresentação de M. Paulo Nunes. Procurei o exemplar em mais de uma banca até que o encontrei. A reportagem exibindo foto minha, saíra bem escrita, mas continha um erro. A jornalista que me entrevistara omitira do meu nome literário, a palavra “Filho”. Sem querer, virei o nome de papai. Ainda bem que estava em boas mãos paternas e na mídia jornalística que ele tanto amava.

Voltando a Teresina, tópico principal desta crônica, pude observar outras coisas. Me convenci por completo  de que sou um estranho na cidade. Perdi mesmo o bonde da história de Teresina.

A minha Teresina não é a de hoje. Ela ainda existe e se estende por todo o velho centro da urbe. Lá vejo, intactos, alguns pontos de referências; o Theatro 4 de Setembro, o Rex, a Praça Rio Branco (o relógio!), o prédio do Arquivo Público (ó tempos da infância!) da rua Coelho Rodrigues e que, hoje, comporta também o Conselho Estadual de Cultura, a Praça Pedro II, o Karnak, a Praça João Luis Ferreira, o antigo Prédio dos Comerciários (que, um dia, fora o mais alto edifício da cidade), a Praça do Liceu (ah, sim, Landri Sales!), o Liceu Piauiense, as igrejas de São Benedito, a minha preferida, a do Amparo, a das Dores, a Praça da Bandeira, muito modificada e maltratada, e principalmente as queridas e amorosas ruas da velha Teresina, nas quais tudo nelas me leva inexoravelmente ao passado. Ah, ia-me esquecendo, o velho rio Parnaíba, o Poti (agora com sua enchente e suas vítimas). Enfim, esse passado soterrado no tempo, me está, contudo, vivo e ora me leva à alegria, ora à melancolia. 

O que não se circunscreve a essas ruas, a esses prédios, a essas arquiteturas variadas alcançadas pela minha geração não parece fazer parte da minha memória. A Teresina nova, trepidante, dos arranha-céus não me atrai. Essa Teresina verticalizada se iguala às outras metrópoles, vira mesmice. Nada tem a ver comigo em Teresina.

Relendo os belíssimos poemas de Paulo MachadoPost card/57” e “Post card/77” extraídos do livro Tá pronto, seu lobo? e “Nas ruas da minha cidade há lições? (É preciso aprendê-las)", retirado do livro A paz no pântano (1982), que se encontram na antologia A poesia piauiense no Século XX, de Assis Brasil, vejo que a poesia de Paulo Machado, de alguma forma, me conforta e não me deixa esquecer essa Teresina. Os dois primeiros poemas citados se valorizam pela riqueza semântica resultante de sua arquitetura contrapontística em termos de realidades espaciais semelhantes aliadas a realidades temporais diversas. O terceiro poema, ainda inserido na categoria do tempo fluído, reforça o tom rememorativo de viés rebelde na transposição da realidade histórico-social. Poemas de grande impacto estético que, em mim, despertam, de certa forma, por coincidência ou não do fenômeno poético, quase a mesma sensação provocada por aquela maneira de descrição pulsante, vibrátil, vigorosa, do realismo inusitado de Cesário Verde (1855-1886), como seriam exemplos os versos abaixo do poema “Post card/57":


                                    No mercado central pretas carnudas
                                    Vendiam frito de tripa de porco
                                    Fígado picado e caninha.


Os novos bairros, avenidas, artérias, em suma, o espalhamento topográfico horizontal da cidade me espanta e ao mesmo tempo me dá a sensação de que estou em outro lugar, que nada tem mais a ver comigo, e com o meu espólio (triste espólio devorado pelo tempo!) de relembranças. Estas, por definitivo, vou encontrar num cruzamento qualquer da minha própria Teresina da memória.



Cunha e Silva Filho
via Portal Entretextos

MANHÃ DE SOL NAS CLASSES, Guardia Nova







todo domingo renovo o sal
sol e desgraça na capital

vou de novo só pra ver
pelo salão de festa
olha o corpo que dança
pela força que resta

uma tá preta sem parasol
outra vermelha no futsal

bate 36 poses
na beirada azulada
no rasinho piscina
no fundo engole água

embaixo do sol
pode acontecer
isso e muito mais amor

péra deixa chegar fevereiro
penso direto na hora de tá lá
vou cantando vou chegar primeiro
deixa despelar a cara

pela manhã produtora
hora duradoura dourando sem mar
numa cena obscena
outra dança pra moda
não enxergo a saída
quem atou minha vida aqui

debaixo do sol
pode acontecer
isso e muito mais amor



(...)



Primeiro LP da Guardia, gravado em 2013 com produção de Jan Pablo e Cavalcante Veras, com exceção a "Melvin Jones" produzida por Dmitri Petit e Jan Pablo. Todos os instrumentos presentes no disco foram tocados e programados por Cavalcante Veras, Dmitri Petit e Jan Pablo. Participação especial de Bruno Marques na bateria de "Setenta e Seis" e Makeh (Violante) na voz de "Vestida de Branco".



Guardia Nova (2013)
Jan Pablo/Cavalcante Veras
Canis Vulgaris Records

27.1.16

SOB OUTROS CÉUS, Da Costa e Silva


IV



Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata...

O seu destino em retratar consiste,
Porém o rio tudo o que retrata,
De alegre que era, vai tornando triste,
No fluido espelho móvel de ouro e prata...

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou desta maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.

Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio...



Da Costa e Silva
em Pandora (1919)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

ZEZÉ LEÃO, VALENTE E TEMIDO, Arimatéa Carvalho




José Leão (Zezé Leão): Se Pernambuco teve Lampião, no Piauí reinou Zezé Leão. A frase rimada serve para ilustrar a fama dessa figura histórica, polêmica e discutida. Filho de uma das mais importantes famílias piauienses, a Arêa Leão, José nasceu em 1901 e morreu em 1956, num episódio cruel e que dá bem a dimensão do tipo de realidade que cercou seus 55 anos de vida.

Zezé Leão foi morto pela polícia no município de Água Branca e teve o seu corpo dilacerado. No Cemitério São José, onde foi enterrado, os coveiros contam que seu corpo chegou dentro de um saco, tamanha a mutilação sofrida.

A polícia fazia parte da trajetória de Zezé Leão de duas formas. A primeira foi bastante honrosa. Em 1930, após liderar ao lado dos irmãos Miguel, João e Júlio a Revolução no Piauí, ele recebeu o título de capitão da Brigada Militar que, mais tarde, viria a ser a Polícia Militar. Como militar, Zezé foi valente e temido.

Seu segundo envolvimento com os militares, no entanto, revelou-se desastroso. Próximo do Quartel Militar, que funcionava no prédio do Centro Artesanal, na Praça Pedro II, Zezé reencontrou-se com o capitão Vanderlei numa mesa de bar. O oficial já havia detido Zezé por homicídio. Segundo registro da época, o "Lampião do Piauí" matara um soldado. Gole vai, gole vem, surge uma discussão a respeito da prisão do Zezé. Bem mais alto e forte, o capitão dá um soco no valente jovem. Horas depois, o militar estaria morto. Zezé foi à sua casa, pegou uma arma, voltou a abateu Vanderlei.

A prisão de Zezé Leão não representou o fim de sua história de mortes e coragem. Folclore à parte, a maioria das mortes não ocorreu por crueldade ou capricho. A origem de sua fama de matador está num conflito de terras envolvendo sua família, os Arêa Leão, e o coronel José Liberato, outro grande latifundiário da região do município de São Pedro - que depois daria origem a um punhado de cidades como Água Branca, Hugo Napoleão e Miguel Leão (homenagem ao mais velho dos quatro irmãos homens da família).

A briga entre os Arêa Leão e Liberato pela posse de terras se alastrou por mais de uma década no interior do Estado. Foi o conflito armado que provocou o aparecimento do bando de jagunços, profissionais contratados para executar "serviços" e proteger as fazendas. Zezé Leão e seu bando ficaram famosos, mas há grande diferença entre ele e Lampião: enquanto o primeiro era latifundiário e de família tradicional, o outro era um nômade errante.

As mortes de ambos os lados terminaram em processo na Justiça. O julgamento do coronel José Liberato ocorreu no Tribunal de Justiça que, à época, instalava-se no prédio do hoje Museu do Piauí, em frente à Praça da Bandeira, no centro de Teresina. Liberato era acusado pelos Arêa Leão de homicídio e o evento mobilizou toda a capital. Os advogados do coronel, Adolfo Alencar (tio do empresário Valter Alencar) e Mário José Batista, também eram brigados, o que provocou uma curiosa defesa: cada profissional usou uma tese. Liberado foi absolvido. Ainda hoje a vida de Zezé Leão é tabu. Sua família se recusa a comentar o assunto.

Um dos filhos, Altamiranda, funcionário da Prefeitura Municipal de Teresina, informou que os irmãos ficaram magoados quando um escritor tentou publicar livro com o título "O Cangaceiro Zezé Leão". A família não divulgou o nome do escritor. Os jornais das décadas de 40 e 50 têm registros de episódios envolvendo Zezé Leão.

História Macabras e Cruéis, o folclore tratou de embaralhar o que é verdade e o que não passa de ficção na vida do temido Zezé Leão. A coragem do ex-militar deu origem à frase "valente que nem Zezé Leão", bastante comum no interior piauiense.

Conta-se que, no final da tarde, ele sentava-se no alpendre do casarão da fazenda Altamira, em São Pedro, e escrevia seu nome na fachada do imóvel usando o revólver. Embora seja difícil imaginar tamanha destreza com um revólver a ponto de desenhar letras com rajadas de balas, a história correu o Estado e hoje é contada como verdade.

Em outro episódio, Zezé Leão viu um negro assoviando e perguntou qual era a música. "É Asa Branca", respondeu o negro. O valentão mandou o rapaz assoviar até inchar os lábios e depois disse para ele ir embora. Quando o negro ia cumprir a ordem, Zezé o matou com sete tiros de revólver.

Segundo a tradição popular, Zezé teve duas orelhas arrancadas e penduradas num cercado, antes de ser morto, em 1956. Mas a versão oficial não registra o fato.

Entre as muitas histórias, duas são verdadeiras: Zezé Leão mandou dois de seus jagunços capturarem no Bairro Vila Operária, numa obra do colégio Leão XIII, dois trabalhadores que haviam fugido da fazenda da família. Os jagunços levaram os homens à força, alegando que eles tinham saído das terras de Zezé com dívidas. Os dois nunca mais foram vistos.

Além disso, o polêmico membro da família Arêa Leão destruiu um dos jornais de Teresina por motivos políticos, conforme relato do prefeito Wall Ferraz em seu livro de memória.

No Cemitério São José, na zona Norte de Teresina, os coveiros mais antigos relatam a fama de valentão de Zezé. Passando 42 anos de sua morte, o "Lampião do Piauí" sobrevive em episódios impressionantes, sejam verídicos ou fantasiosos.

De acordo com um deles, não foi a polícia que matou Zezé. Ele teria sido assassinado por um caboclo e só então os militares se apossaram de seu corpo.

O ex-capitão da Brigada Militar foi casado com dona Olinda e tem muitos herdeiros vivos, entre filhos, netos, bisnetos e sobrinhos. A maioria não gosta de lembrar o passado.

"Eu Conheci Zezé" - Zezé Leão era educado e gentil quando estava sóbrio. "O problema acontecia quando ele bebia", relembra o professor Moaci Madeira Campos, que conheceu o valentão pessoalmente e protagonizou um curioso episódio com o homem que virou sinônimo de coragem.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil vivia em estado de sítio informal. Os cidadãos precisavam de um salvo-conduto para viajar dentro do pais e o clima era de tensão. O professor Moaci Madeira Campos tentava visitar a noiva no interior e aproveitava o único caminhão que fazia o percurso. Quando o veículo chegou ao posto militar situado no Bairro Tabuleta, na zona Sul da Capital, a polícia mandou o motorista parar:

Foi exigido o salvo-conduto de todos os ocupantes do caminhão. Como o documento do professor estava com prazo vencido, o militar responsável pela fiscalização disse que não permitiria que ele prosseguisse. "Aí Zezé Leão virou para mim e disse: O senhor vai viajar sim, professor. Vamos ver se o senhor não viaja!", relata Madeira Campos. Ele confessa que ficou com medo da reação de Zezé, caso o militar resolvesse comprar a briga. "Mas, graças a Deus, fomos liberados e não aconteceu nada", conta o professor.

O segundo encontro entre Madeira Campos e Zezé Leão não foi menos interessante. Dono do Colégio Leão XIII, o professor recebeu a inesperada visita do ex-capitão. Ele estava bêbado e reclamava que havia discutido com o dono do colégio onde seus filhos estudavam. "Fiquei com medo que ele pedisse para transferir os alunos para meu colégio, pois não me relacionava tão bem com o dono do outro estabelecimento. Mas o convenci a não levar o caso adiante", diz.

Segundo Madeira Campos, Zezé era de "fino trato" e muito de sua fama surgiu dos conflitos armados entre a família Arêa Leão e o coronel José Liberato que, por incrível que pareça, era parente desse grupo familiar.



Arimatéa Carvalho
em Jornal Meio Norte, Alternativo, 
9 de agosto de 1998

A PENITENCIÁRIA, José Ribamar Garcia




Nasci atrás da penitenciária, numa casa de meia-água, com a fachada desbota e avermelhada pela poeira da rua de terra solta. Não tinha luz elétrica, nem água encanada. Mas era de telha, o que representava segurança, porque, na época, a cidade vivia sob o terror dos incêndios. E estes só aconteciam nas casas cobertas por palhas de carnaubeira ou babaçu. Havia dia de ocorrerem de três a quatro incêndios. Fato nunca investigado devidamente pelas autoridades, que acabavam jogando a culpa nos políticos da oposição. Estes replicavam, dizendo que o governo queria livrar a cidade dos pobres, por isso lhes queimava as casas. E aquela fora a melhor que meu pai conseguiu alugar para alojar a família. Recém emigrado do Maranhão, ele ganhava a vida trabalhando exaustivamente, fazendo de tudo na garapeira do amigo conterrâneo. E eu cheguei naquele clima aterrorizante, numa madrugada chuvosa de modo inesperado até, sem parteira por perto. O que obrigou o papai a sair, no temporal, às carreiras, pela cidade que pouco conhecia, à cata de uma. Mas não deu para esperar. Quando ele chegou com a parteira, por sinal semicega, eu já estava entre as pernas de minha mãe, esperneado aos berros. O cordão umbilical foi cortado pelo tato.

A penitenciária me fascinava. Não pela dimensão de seu prédio, ou pela altura de seu muro, coberto por fios elétricos descascados. Conta-se que fugitivos morreram eletrocutados por esses fios. Essa fascinação consistia numa curiosidade de saber o que se passava no interior e como era a vida de sues habitantes e a razão que os levara para ali. Quando indagava às pessoas grandes esse motivo, respondiam-me com evasivas respostas, ou de modo vago, lacônico, talvez por comodidade ou por acreditarem que criança não deveria saber dessas coisas. E me enfatizavam que preso não prestava, era gente ruim, sem alma, capaz de tudo. Isso, com certeza, me foi desenvolvendo um sentimento para com ele de repulsa, desprezo. 

Quando via a turma de presos limpando as ruas, as praças ou descendo escoltados, à Firmino Pires, rumo ao tribunal, sentia algo como se fosse nojo. Realmente, pareciam uns páreas: maltrapilhos, subnutridos. Espantava-me que os meninos de minha rua não tivessem o mesmo sentimento, pois demonstravam admiração e até piedade. Também não me metiam medo. Nem mesmo um de quem diziam que matava crianças para comer os miolos. Dos famosos, sobres os quais corriam estorias de bravura e valentia, como o Catnã ou Zezé Leão, simplesmente, eu não acreditava nas estorias. E os achava iguais, sem valor algum. Nos julgamentos de crimes envolvendo gente importante, que a Rádio Difusora se preocupava em transmitir, sempre me colocava ao lado da acusação. Não me deixava inclinar pelas palavras bonitas da defesa. E me revoltava com a absolvição. No entanto, a curiosidade de saber o cotidiano da cadeia estava comigo.

Gostava de passar pela sua porta de bicicleta, ou nos ônibus que faziam as linhas de Timon e Matadouro, a fim de espiar o seu interior. Mas não via além do portão de ferro dividindo o longo corredor de entrada. À frente, do outro lado da rua, sob enormes árvores, os guardas passavam o dia conversando, enquanto um se escondia dentro da guarita. Viam-se, também  em conversas com os soldados, alguns presos, certamente os de bom comportamento ou financeiramente remediados. Aliás, não se notava preso endinheirado limpando logradouros públicos. Essa discriminação me causou estranheza. E me mostrou o inverso da moeda. A sociedade traça normas de conduta e quem as violar será segregado, isolado; Porém, se o violador for possuidor de bens materiais, a regra é mudada. A própria sociedade se inclina, se corrompe, invertendo seus valores. Percebi cedo na farsa dos julgamentos. A balança da justiça pendendo contra o pobre de dinheiro para vergonha da deusa Nêmesis. 

Ao lado do portão de entrada, espalhados sobre a calçada, os presos expunham, à venda, seus trabalhos de artesanato, feitos de madeira, cerâmica, embira. Bem elaborados, confeccionados. Caminhões de madeira com réplica de várias marcar de carros de verdade. Mas, impulsionado pelo meu sentimento, acima dito, preferia os caminhões de buriti que meu irmão fazia e com os quais brincava, enchendo-os de capim, apanhado no próprio largo da penitenciária para dar de comer aos meus preás-do-rei. Mesmo porque os que meu irmão fazia, além de mais bonitos, não custavam dinheiro.

Nesse largo que se estendia diante do prédio, até circo fora armado, mas depois a prefeitura suspendeu licença para essa finalidade, alegando medida de segurança. Já se falava em segurança... Tolice, aqueles presos subnutridos não tinham força para se evadir. Nunca ouvi falar de fugas, nem de tentativas, pelo menos, em massa. Os que conheci, mais tarde, viviam resignados, conscientes de que estavam pagando o crime cometido. E ainda respeitavam a Justiça, inclusive conhecendo a sua vulnerabilidade.

O sentimento de repulsa, nojo, que eu tinha daqueles infelizes foi, com o decorrer do tempo, me abandonando. Exatamente à proporção que esse mesmo tempo me foi exibindo o lado real, cru, incolor do homens. E constatei que nem sempre o transgressor é o único culpado de seu ato. Uma série de circunstâncias, um conjunto de coisas complexas o faz transgredir. E nem a sabedoria das ciências, ainda, conseguiu transpor esse obstáculo, no sentido de evitar ou compelir o desvio desse comportamento. O homem permanece na sua ilha, fechado, isolado, incógnito dele mesmo, sobretudo.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

25.1.16

TERESINA, Fernando Ferraz




Verde cartão-postal,
iluminada entre espelhos
de rios que se encontram,
Teresina absorve e emite luz
adubando e cultivando a vida
na energia do calor de seu povo
e no coração dos que dela se encantam.



Fernando Ferraz
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

O RIO, Paulo Machado


ao poeta Cineas Santos


preciso urgentemente escrever um poema!

que os versos sejam vorazes,
lembrando o rio de minha cidade,
comendo as pedras do cais.

mas como escrevê-lo?

como domar o rio de minha cidade
à condição de poema?

o rio de minha cidade não pede adjetivos,
principalmente recusa os que o tornam abstrato.

o rio de minha cidade é um rio migrante,
por que aprisioná-lo no corpo do poema?

o rio de minha cidade guarda em suas entranhas
o orgulho do homem sozinho.

o rio de minha cidade é água viva na carne,
água pesada na memória.

o rio de minha cidade é torto
como uma cicatriz,
fazê-lo reto seria contradizê-lo.

vivê-lo, petrificá-lo nas retinas.
esquecê-lo, jamais.

preciso urgentemente escrever um poema!



em "ta pronto seu lobo?" 
Edições Corisco: Teresina, 2002 (2ª edição)

23.1.16

TERESINA


                                                  para g.c.


Levei horas em teu caminho
e ao te encontrar
mergulhei
pela tenras flores de tuas mãos

Vi que estavas em cada pequena fresta
de meu impreciso contorno

Adestrei minha vontade voraz de devorar tuas palavras
em cada canto teu descobri uma saudade
daquilo que eu jamais conhecera



Ana Paula Pedro
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

DEFINIÇÃO


                                            para nacif elias


Teresina:
ausência
de uma presença...
presença
da mesma ausência
só memória na memória
sempre viva.
só saudade... só distância
só vontade.
...e um ardor medonho no peito.


                                            (Rio, 23/08/62)


Torquato Neto
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

22.1.16

FAZIA SOL... NO RIO NÓS DOIS...




Naquele dia lá no rio nós dois
quais dois delfins espadanando nágua,
brincávamos com puerícia louca,
sorríamos sem meditar em mágoas.
Eu via as curvas brancas dos teus seios
de líquidas pérolas matizadas...
Ai! vibraram em mim tamanhos desejos,
meu corpo ardia - volúpias alarmadas!
O sol tão brando "curiava" ao longe
perlongando as curvas do maiô escasso
com a sutileza dos intrusos raios...
Nós dois sorríamos um sorriso lasso
esquivantemente a devolver carinhos...
e o sol ao longe olhando com olhar devasso!



Humberto Guimarães
em JUVENÍLIAS

LOURO, Herculano Moraes

                             À memória de Euclides Marinho.

Tinha a loucura do espaço,
a lúcida vertigem do sonho.

Sua vida era um filme inacabado
como o próprio amor.

Planava no espaço como um gavião
- os cabelos ensolarados
pela vida.

                 (que será do espaço
                 sem o sol dos seus cabelos?
                 que será da nuvem
                 que brincava de ter medo
                 ao seu planar?
                 que será da vida
                 derrotada em pleno espaço?)

                 Projétil a esmo,
                 asas sem rumo,
                 pássaro ferido
                 arremessado no tempo.

O coração enciumado da terra
manchado de sangue.
O coração dos homens
torturado de dor.


Herculano Moraes
em SECA, ENCHENTE, SOLIDÃO
Editora EMMA: Porto Alegre, 1977

O TERROR DA VERMELHA


parte 1:



parte 2:



parte 3:



Direção: Torquato Neto
Filmado em Teresina-PI, em 1972
Câmera: Arnaldo, Albuquerque
Edição em Super 8: Carlos Galvão

Elenco: Edmar Oliveira, Conceição Galvão, Geraldo Cabeludo, Claudete Dias, Torquato Neto, Etim, Durvalino CoutoPaulo José Cunha, Herondina, Edmilson, Carlos Galvão, Xico Ferreira, Arnaldo Albuquerque e os pais de Torquato, Heli e Salomé.

(...)

É o caso de sua única produção como diretor, "O Terror da Vermelha'', que veio a ser exibida publicamente pela primeira vez em 2001, 28 anos após sua morte, na mostra "Marginalia 70 - O Experimentalismo no Super-8'', evento que fez parte do projeto "Anos 70; Trajetórias'' do Itaú Cultural sob a curadoria do professor Rubens Machado Jr. O valor desta exibição está no fato de que assim se resgata um documento de um período singular da recente produção cultural do país. Seu significado é muito maior do que o que emana da aura romântica desprendida de seu suicídio. O Terror da Vermelha é o registro incontestável da verve e do domínio por Torquato Neto dos fundamentos da linguagem cinematográfica, um de seus lados ocultos que ficou adormecido na virtualidade do seu mito marginal. Até então o que havia era apenas a referência ao filme em dois textos poéticos que constam da segunda edição dos Últimos Dias de Paupéria (p.339-346), no qual Torquato fixa uma espécie de roteiro que mais tarde servirá de base para a montagem feita por Carlos Galvão em 1973. Torquato nunca chegou a ver seu filme montado. A montagem que foi exibida na mostra em 2001 foi feita por Ana Maria Duarte, que foi casada com o poeta. Carlos Galvão também montou uma outra versão, com algumas cenas que não constam da montagem de Ana Maria Duarte e com uma trilha sonora diferente. O resultado é, em termos gerais, praticamente o mesmo, contudo na versão de Galvão as imagens onde aparecem as "palavras-cenário'' (VIR, VER, OU, AQUI e ALI) estão mais nítidas. Na primeira versão, montada dor Ana Maria Duarte e que foi exibida publicamente em 2001 a trilha sonora oscila de uma atmosfera tropicalista para o suspense que precede os confrontos nos filmes de western.

O Terror da Vermelha foi rodado em 1972, quando Torquato Neto voltou para Teresina a fim de se internar para uma desintoxicação. Neste ponto de sua trajetória todas as rupturas com os companheiros tropicalistas já tinham se dado e as crises eram constantes. Do convívio com um então grupo de estudantes que se articulava em torno do jornal Gramma, do qual participava Carlos Galvão, nasceu o elenco da única produção que teve Torquato Neto na direção.

"(...) fui a Teresina pelo início de
junho (sanatário (sic) meduna), entrei
em contato com os rapazes que
haviam feito o jornal gramma e
Partimos para um superoito de metragem média que resultou neste
O TERROR DA VERMELHA (ou qual outro nome escolherem).''
(TORQUATO NETO. Úlimos Dias de Paupéria, página 339)

Trecho do artigo "O Terror da Vermelha: estética da agressão e rigor formal de Torquato Neto no cinema" de Silvio Ricardo Demétrio, da Universidade de São Paulo

21.1.16

CHAPADA DO CORISCO (1979) - Clodo, Climério & Clésio




Lado A

1. Rixa [Clodo/Climério] 00:00
2. Flor do Coqueiro (Pita) [Clésio/Clodo] 02:10
3. Morena [Naeno] 05:27
4. Chapada do Corisco [Clodo/Climério] 10:01
5. Dia Claro [Dominguinhos/Clésio] (Part. Esp.: Dominguinhos) 12:55

Lado B

6. Oferenda [Clésio/Clodo/Climério] (Part. Esp.: Fagner) 17:40
7. Modo de Ser [Clodo] 20:48
8. Timom [Clésio/Climério] 24:13
9. Enquanto Engoma a Calça [Ednardo/Climério] 28:31
10. Revelação [Clésio/Clodo] 31:45

(...)

CHAPADA DO CORISCO | Clodo/Climério

eu me conheço
eu não me arrisco
eu não mereço 
ficar longe da chapada do corisco

é que a cidade é verde
é que ela me amadurece
é que eu vim de lá menino
e nada me acontece

quem sabe o que quer
fuma qualquer cigarro
traça qualquer pinga
tira qualquer sarro

quem não sabe sabe
não conhece bem
quem ensina o cabe 
não cabe ninguém

(...)

TIMON  | Clésio/Climério

o Timon não tá no barco
tá na terra
do outro do rio eu chego lá

vou ver meu amor

entre mágoas que esse rio não separa
corre essa canoa embarcação
pra ver meu amor

(...)

Segundo álbum dos irmãos piauienses ClodoClimério e Clésio. Lançado pelo selo Epic da gravadora CBS, cuja direção artística estava sob o comando de Fagner. O LP se chamou Chapada do Corisco (título de uma das faixas, assinada por Clodo e Climério) e contou com a participação dos músicos Manassés, Abel Ferreira, Dino das 7 Cordas, Tuti Moreno, Dominguinhos e o próprio Fagner, dentre outros. Estão presentes no disco as faixas "Revelação", sucesso na voz de Fagner, e "Timon", regravada por Marlui Miranda em seu álbum "Revivência". A capa do LP foi criada por Fausto Nilo, juntamente com Januário Garcia.

20.1.16

SIGLAS POÉTICAS & OUTROS LANCES





APEP - CCEP - LOTEPI?
$ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $... e só!
FDP - H.G.V. - CRP?
Briga... bate/mata... prende.
FAGEP - IAPEP - FAZENDA?
E a renda? Onde é que está a renda?
UFPI - CODIPI - CCNIPE - COHAB?
? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ?... e Itaraté II!
PTB - PSD - PC do P?
Quem disse que Paulo César voltará pro Parnaíba?
COBAL - PMT - CBD - FRIPISA?
"E eis a relação dos congelados..."
CEPISA - AGESPISA - TELEPISA e o Bacalhau?
Eternos preços de semana-santa.
PETROBRÁS - OPEP - e IDI AMIM?
Em cartaz: "Em busca de um crioulo doido".
OTEP - DDT - Prece Poderosa?
"Há no ar um estranho perfume que mata".
PIEMTUR - ODD ou OMO?
Prefiro sabão de coco. É muito mais útil...
FUNAI - FEEMA e SUDAM?
"Temos índio a molho-pardo e Juruna grelhado com
batatas fritas".
Bah! Com tanta sigla,
tanta inoperância
e tantos projetos estatísticos



Venâncio do Parque
em VIA CRUCIS - Verso e Prosa

RUA DA PALMEIRINHA, Herculano Moraes


A rua da palmeirinha
perdeu seu nome de origem,
como as outras ruas.

A palmeirinha era símbolo
da rua dos meus meninos.
Dos meninos que se perdiam
pela baixa-do-chicão.

A baixa-da-égua já mudou de nome,
mudou de nome o bairro do barrocão.

O asfalto sepultou os trilhos da rua Bela,
o tempo mudou o nome da rua Estrela.
E num recanto perdido da memória
a lembrança viva da rua Glória.

Um dia mudarão todos os nomes,
e a cidade ficará perdida
procurando suas ruas mortas.


Herculano Moraes
em SECA, ENCHENTE, SOLIDÃO
Editora EMMA: Porto Alegre, 1977

LENDAS, Clóvis Moura


         Chegam lendas, chegam lendas,
lacustres lendas, telúricas
lendas renascem na noite.
Acordamos assustados
(somos apenas crianças)
e vemos pela janela
milhões de bichos na noite.
Vem o Cabeça de Cuia
dançando de madrugada,
vem a moça que morreu
no Parnaíba afogada:
com o seu vestido de noiva
que não pôde ser usado.
Os espíritos que puxam
carros cheios de correntes.
E os tesouros enterrados
pelos avós decadentes...
E os avisos dos amigos
que morreram de repente...
E o homem que virou bicho
porque bateu na semente...

Chegam lendas, chegam lendas
com seu ritmos de renda.
Acordamos: nem a vela
que deixamos encontramos,


         Os sapos estão gelados
pelo mistério das lendas.
E os benditos dos finados
cantados solenemente
cortam o deslumbre da noite
e causam suor na gente
(somos apenas meninos
na madrugada que treme).

 
Clóvis Moura
em "Argila da Memória" (1962)

TRAVESSIA




I


pela cidade
entre colunas
terça-feira
pálidos todos
pálidos sentidos



II


voltado ao sol
escarlate rosto
         árido
fulgidia busca
anjo em calma
ligado ao mundo



em SÁBADO ÁRIDO
Teresina: 1985

A CIDADE EM CHAMAS - Poema Trágico de Um Crime Impune


                                                            aos "filhos de ninguém", personagens desta história,
                                                            heróis da cidade destruída e vítimas do ódio,
                                                            da especulação imobiliária e da maldade dos homens


PRIMEIRO MOVIMENTO

Teresina chora

I


Tremeram as palhas da cidade
              na loucura de 41

amanhecera
era noite nas sarjetas da mente
e queimava o brilho de estandartes

subiram ruas e era triste a vida
disseram alegrias e não chegaram

todos pediam ação
no muros, nos papéis
nas esteiras-camas
no silêncio da polícia
e na certeza
todos pediam ação
e era cedo
e era longe
mais que perto se fez o tormento
e das palhas ao vento se viu a vida
entre corpos, entre mentiras
lágrimas, potes, trapos
e todos queriam ação
a mesma ação de peso
a loucura da satisfação

amanhecera!
é necessário insistir; amanhecera
e cada pingo desse inverno
caía como punhal em cada dor
a chuva, o frio, o cobertor
a palha era o teto de sossego
e já não se podia pensar
e já não se permitia verdade

era ela, magra na escuridão das águas
triste no chorar dos céus
que gemia
era ela, na eterna espera
nos tormentos seus
que se quedava em Karnak
era ela, a criança Teresina
omissa nas brasas dos baús
nos ossos dos perdidos
nas carnes de Luzia
que se via violentada
e era ela, mais do que tudo era ela
na eleição dos seus líderes
na aceitação da imposição
que clamara piedae

amanhecera
e cresciam os dias
e nem mesmo a insistente chuva
nem mesmo a solidão do cais
fizeram de Evilásio Vilanova
a paralisação do gesto
é que do medo dos casebres
se formou a gana
a tara de se ter presente
o suplício de um tempo
e do Parnaíba, as águas eram cheias
e de Getúlio, a força era tudo
pois era glória...
o tempo todo lhe rendiam palmas

se pelas ruas da pobreza
serpenteiam chicotadas
carrega o fardo da miséria
sufoca o apelo da terra
fazendo pouco o cismar dos dias
em meio ao tormento da desilusão

e por mais que emudecessem as cinzas
ficou marcada a história dessas vidas
em que se baseou essa vergonha

- chega!
basta a dor desse dia negro
(basta dessa "chuva" maldita)

começara!
raiou o claro em pingos dessa trama
pediu - trágico - a trágica forma
fez-se agora o labirinto
e não bastaram os gritos dos afoitos

é que estamos em terra firme
em meio a agonia
no mandato de alegoria
na estrutura de um torpe Brasil
como em ti perto
como em ti morte
mata - geme - sofre

é dia
e a chuva grita contra os deuses
mas não se decidia a tempo

essa loucura é antiga
é espada rasgando o ventre
é espera de mil séculos
é verdade de agora
e és tu, só tu, Teresina
que de dentro das chamas
nos abre o véu do tormento
dessa angústia presente
que destrói a grande luta
e nem Evilásio
nem Leônidas
nem vida, nem morte
nem medo, nem Luzia
nem Mathias
nem nada
        te fez esquecida
é que hoje começara
e tua vida queima dolente

era um tempo de dor
e por aqueles dias o fantasma do calor
rondava casebres de palha
e não se sabia a que momento
se manisfestria as garras da covardia
e enquanto se lamentava nas ruas do Mafuá
já se previam a indecisão de ser
já se tramavam nos gabinetes
o passo da piromania

os jornais escreveram tantas estórias
e do grito da oposição
nada abalava a marcha
dos troncos idos e dos marginais
em busca de mentira, crime e ódio

a brasa,o solo
   o tempo, a mão
     o escuro, o claro
o dia - ação

encapuzados empunharam tochas
e o sono dos infelizes seres
                      interrompeu-se
e de dentro da fumaça
o tossir sem rumos, o chorar das mães
- o rádio, o baú de roupas, a bilheira
meu filho, Deus, meu filho é cinzas

de mais distante nas perdidas horas
o fumo sobe - Teresina implora

por mais distante dos tempos de agora
a pira surge - Teresina cora

e por mais distante das perdidas horas
a "chuva" espalha-se - Teresina chora

chora, chora
chora
chora
a "chuva" queima
Teresina chora.



Afonso Lima
em A CIDADE EM CHAMAS - Poema Trágico de Um Crime Impune
PRIMEIRO MOVIMENTO: Teresina chora, I
Teresina: Multiservice, 2010

MENINO




Ronaldo era um menino triste:
colecionava figurinhas
e histórias em quadrinhos.
Contava nos dedos magros os dias
da semana, na espera dos sábados.
Quando lia as histórias em quadrinhos,
sonhava com os voos do super-homem.
Ronaldo saiu numa terça-feira, dizem,
à caça de aventuras.
Virou manchete,
andou na boca do povo.
Foi encontrado morto, numa manhã comum,
solitário, no necrotério do HGV.



Raimundo Alves Lima (RAL)
em CANÇÃO PERMANENTE
Edição do autor: Teresina, julho de 1982

VIDA NOTURNA




Caminho por uma rua de ausências
pálido de medo do tempo
e das notícias dos jornais.
Esta grande noite que vivemos
nos ensina a temer as esquinas.



Raimundo Alves Lima (RAL)
em CANÇÃO PERMANENTE
Edição do autor: Teresina, julho de 1982

NOTÍCIAS ESPARSAS




Dos países longíquos
chegam notícias de amor e morte.

Na rua onde moro,
neste momento, há quem jogue cartas,

desfira socos em canalhas, cometa adultério,
morra de tédio.

(Muitas Coisas estão em minha rua,
não em mim)



Raimundo Alves Lima (RAL)
em CANÇÃO PERMANENTE
Edição do autor: Teresina, julho de 1982

O TREM




Nenhum segredo há de ser violado
com a inesperada passagem
do trem com sua fúria.

O trem passa ao lado
dos que sobrevivem nas palafitas
às margens da estrada-de-ferro,
levando o pesadelo dos homens
em suas engrenagens de pânico.



Raimundo Alves Lima (RAL)
em CANÇÃO PERMANENTE
Edição do autor: Teresina, julho de 1982

18.1.16

TRIBUTO A TORQUATO NETO




hoje que você se foi
e ninguém pode negar
o que está feito,
as palavras guardadas no peito

são flores navalhas
no chão do real
e um poeta conhece
o tamanho da fúria
capaz de gerar um furor
que as palavras são flor e punhal.

hoje que você se foi
e o tempo de chorar
também já foi-se embora
no verde final da nossa flora,
as palavras são flores de fogo.
e um poeta conhece o tamanho do verso
capaz de abolir o acaso,
que as palavras são lances de dardos.

hoje que você se foi
os bois que berravam na chapada
viraram sócios do açougue.
as mídias e os midas de sempre
silen$ifraram a nossa dor.
e neste cenário de real pavor,
como num lance de touradas,
o troféu é entregue ao matador.



Salgado Maranhão
em Punhos da Serpente
Achiamé: Rio de Janeiro, 1989

SOL DE MINHA TERRA




Trago n'alma o sol de minha terra
a luz maior, claridade em mim
no som do Parnaíba que se encerra
o trilhar de um caminhar sem fim

carrego, imune, a força mais pura
a saudade do amor eternal
traçada nas glórias da loucura
do meu sonho alegre e jovial

trago, enfim, a lembrança das ruas
os quintais da infância e as luas
que no Poti vivem em transe

e sufoco as tormentas cruas
que fizeram as dores nuas
da dor de ti que me confrange.



Afonso Lima
Palmas/TO, julho de 2009
em A CIDADE EM CHAMAS: poema trágico de um crime impune
Teresina: Multiservice, 2010

17.1.16

CABEÇA DE CUIA, Herculano Moraes

                                      lenda piauiense.
                                      À Profª Clóris Oliveira.

Que sina maldita
   cabeça de cuia

                     boiando no rio cojuba emergida
                     sete marias não chegam jamais,
                                                              Cabeça de Cuia,

                     e boias insano brincando com os peixes
                     os olhos nas margens do rio comparsa

Crispim foi a água
   na fonte da pia.

                     e as mãos levantadas romperam a fronte
                     e o leite materno era rubro e tingia
                     de negro, teu negro horizonte,
                                                              Cabeça de Cuia.

Que sangue assassino
   manchou tuas mãos.

                     remeiro que passa varejando meu rio
                     não toques cojuba que boia ao teu lado
                     é o filho maldito, é Crispim condenado,
                                                              Cabeça de Cuia.

Meninas tão puras com nome de santa
não chegues tão perto da cuia boiando
É Crispim que espera, é o filho maldito
é Cabeça de Cuia esperando... esperando...

                     Que sina maldita
                        cabeça de cuia


Herculano Moraes
em SECA, ENCHENTE, SOLIDÃO
Porto Alegre: Editora EMMA, 1977

PESCADOR DE MITO, Wellington Soares


O pescador já pensava em desistir, pois não fisgara nada até ali, depois de horas brincando com a paciência, quando sentiu a vara envergar de repente, sob um peso insuportável, mergulhando a cara no fundo do rio.

Como os anos de pescaria falam mais alto, resolveu cansá-lo primeiro para, em seguida, tirá-lo fora. Só aí deparou-se, para espanto dele, não com um peixe grande, como era o mais provável, mas com a figura disforme do Cabeça de Cuia, mito de sua terra natal, apresentado geralmente como temor dos filhos malcriados.

Sob protestos da mulher, que alegava tratar-se de uma lenda e não de um peixe, mandou prepará-lo no capricho, com leite de coco e muito tempero, degustando-o com enorme apetite.

Ao final, apresentou-se no museu da cidade como o homem que tinha comido o Cabeça de Cuia. Hoje as pessoas que visitam o museu observam, com certa estranheza, aquele homem rude, de sorriso aberto e inscrição no peito, e não entendem o motivo de sua alegria. 


em LINGUAGEM DOS SENTIDOS
Teresina: 1991

16.1.16

O CLUBE DO VTS, de Gylberto Mariano




Numa piscadela, o Clube do VTS parece uma daquelas espeluncas de favelas onde se vende cachaça, com tira-gosto de frito de tripa e ovo com gema enegrecida pela ação prolongada da fervura da água. Apertado, com um rústico banco de marcenaria, não possui qualquer placa indicativa. Nem mesmo da Coca-Cola.

Quem tem a sorte de entrar no mais fechado clube de Teresina, vai descobrir que se trata de um lugar aconchegante, excelente para uma conversa descontraída. Não há televisão. Gravador, só para alguns e desde que a música seja genuinamente brasileira.

Diz-se clube para evitar a ação dos penetras. Na verdade, ali é uma confraria, onde só existem dois tipos de cervejas: a gelada, no ponto, e a quente, se algum maluco desejar.

O segredo do Sr. Vicente trindade dos Santos, nascido ali do outro lado do rio Parnaíba, em Timon, conhecido pelo singelo nome de VTS, é o atendimento, literalmente, personalizado, já que conhece as manias, desejos e defeitos de sua fiel clientela, mantida ao longo de quase trinta anos. Ele não tem nenhum empregado para servir os pra lá de cinquentões: São senhores boêmios, seresteiros, amantes da legítima música brasileira. A despeito disso, é difícil, quase impossível alguém do belo sexo aparecer por lá. Parece mais um clube do bolinha.

Além do tratamento “personalizado”, razão maior de seu sucesso, o Sr. VTS, a pedido, serve um peixe, chamado de dietético, sem similar no mundo. O segredo, bem é segredo mesmo. É uma delícia. Mesmo dispondo de um fogão de quatro bocas, ele nunca faz duas peixadas ao mesmo tempo. É na fila mesmo.

Lá tem presença marcada bons “gongozeiros”, acompanhados dos violões do Bruno e do Ludimar e, às vezes, do próprio Vicente. Com licença, vou citar alguns nomes: Irací, Sobrinho, Vitorino, o próprio Ludimar, que é repórter fotográfico. Há o que têm e sabem tudo – ou quasse – de música popular brasileira, pelo acervo que possuem (discos), como o advogado Gil, com mais de três mil títulos. 

Existem clientes metódicos, como o doutor Durwagner, famoso oculista da capital. Ele chega às 18:00 horas. Toma não mais que três Antarcticas e britanicamente, às 19:00 horas, retira-se com um polido boa noite.

É assim o VTS, que fica na Rua João Cabral, nº 30 – Sul.



Gylberto Mariano
em A SAIDEIRA: De bar em bar,
Teresina: julho de 1997

O BAR DA ENCRUZILHADA, Deusdeth Nunes




Mais de trinta anos de existência. Rua 24 de Janeiro, esquina com Olavo Bilac. Maury Mauá de Queiroz. Sua maior patente foi ter sido presidente do Piauí Esporte Clube. É o ponto preferido de uma seleta freguesia cuja filosofia é ditada pelo seu mais legítimo e assíduo representante, o poeta e vendedor de imóveis Jamerson Lemos: “Lá ninguém é de ninguém e todo mundo é de todo mundo”. O Bar da Encruzilhada, nome dado pelo saudoso Eudes Pereira, tem suas regras rígidas, que são cumpridas à risca pelo “caxias” proprietário. Regra primeira: ninguém pode falar mal de ninguém que o Maury dá esporro. Regra segunda: Não aceita jogo de nenhuma espécie entre os clientes, especialmente porrinha. Diz que lá não é cassino. Regra terceira: Não serve a freguês que chega com instrumento musical, alegando que lá não é estúdio de rádio. Regra quarta: Não admite aparelhos musicais nem carros com sons tocando alto. Regra quinta: Não serve a clientes que chegam sem camisa. Diz que quem gostava de descamisado era o Collor e se deu mal.

Fiado tem, mas só para cliente-ouro, aquele que se serve, alta confiança. O limite do fiado é dado por ele. Sabe quando cada um pode pagar. Hoje o tira-gosto é a fruta da época mas já teve tempo que o próprio Maury fazia o assado. Diz que cansou. Maury distingue dois tipos de fregueses: o cotidiano e o ocasional. O ocasional é recebido com reservas, passa por um estágio de observação. Só é servido depois dos cotidianistas. Se um novato reclama do atendimento, ele esnoba, perguntando qual é o número da ficha dele e que aguarde a vez. Os diaristas podem até mudar o canal do aparelho de TV. Atualmente, o Maury já não bebe com os fregueses, mas já foi bom nisso. Hoje, dizem que em virtude de uma cirrose que o deixou alguns dias no hospital, ficou receoso de beber, embora garantam que ele bebe escondido. A cara do dono não é lá essas simpatias, mas tem vez que ele está com a macaca. Como da vez que o intelectual Rubervam Du Nascimento ligou para 222-6502 pensando que era o escritório do Jamerson Lemos, pois tinha anotado como tal. Quem atendeu o telefone foi o próprio Maury, que já estava por conta com o poeta por causa de um “prego”:

- Alô, o poeta Jamerson Lemos está aí?
- Meu amigo, aqui é do estabelecimento comercial do senhor Maury Mauá.
- Mas ele me deu este telefone dizendo que era só chamar, ele é freguês daí...
- Rapaz, freguês meu fica é na calçada!

E bateu o telefone.

Mas o poeta Jamerson não liga para as zangas do Maury e o imortalizou no seu livro-poema As Suburbanas...

Saltando de bar em bar
poisaram no Encruzilhada.
Noturnamente madrugada,
mas Maury ali está
e mete cachaça neles
e pede para fechar.



em em A SAIDEIRA: De bar em bar,
Teresina: julho de 1997

15.1.16

OBSTÁCULO EM DESATINO




Eita meu rio Poty amado
Soube cá do outro lado
Pelas ondas do Joel
Que andas desembestado
Feito jumento sem mãe

Não te cabes mais no leito
Perdeste a calma e o jeito
Põe-se tudo a devorar

Cabeça de Cuia anda apavorado
Com medo de se afogar
Na conversão dos vinténs
Parnaíba deságua de vez em ti
E não tarda

Eras isto o que querias
Na vez de uma veia louca
De artérias entupidas
Correr sem prumo em descida

Quero ver de novo tua floresta de pedras
Milenares, eu quero
Tua vadiagem na Curva São Paulo
Esquecestes de ser os dengos dos manguezais
Das encostas e das Ilhotas já perdidas

Água tua agora sim
Cabelo não há de ter
Deixastes que aterrassem as lagoas
A teu descanso
O Rogério Newton me contou

Ai meu rio Poty amado
Não mais prenuncias o cheiro dos cajus
De Fátima e dos Noivos
És um obstáculo para os shoppings da city
Agora um river out side
E a culpa é tua, só tua…



Acilino Madeira
em Portugal, 06 de maio de 2009

12.1.16

ANZOL



Moro em Teresina
jangadeando jangadeando

Moro em Teresina
à trezentos metros da praia.
Coqueiros estão ali
ao azul próximos
próximos coqueiros, vê?
Verdes carrapichos, matinhos
n'areia, serp, serp.

Moro em Teresina.
5 da manhã morde-me
a praia.
Morde-me quente ali
à trezentos metros.

Ali a praia salga-me
os pêlos, salga-me
a língua, salga-me.




em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)

TERESINA ~ SÃO LUÍS ~ TERESINA




Teresina, você reduziu de ta~
manho, virou brinquedo, ma
quete de cidade daqui das nu
vens. Daqui de cima, você
pequenina passa e some dimi
nuta. Parnaíba~rio: risco
lírico no papel. Nossa Senho
ra das Dores, do Amparo, su
as espadas suas torres, espa
dam nossas bundas no céu. Te
resina limpa dominga azulada
verde mínima, daqui pego~te.


Tirirical da Cidade Antiga i
luminada de musgo e sol. Ao
contrário de Teresina, dila
tas na lupa da chegada. São
Luís, à medida que te sinto,
sinto pulsar forte tuas ve
ias; no ar te impero, te go
verno, frágil Ilha, no ar te
humilho. Ah velha Ilha! Doce
ilha de sal! Onde minha for
ça no teu chão? Miniatura on
de o gigante aéreo agora to
lo algemado transeunte? I
lha, meu passado te palmilha
espanto e encanto ~ brilhas
francesa menna, brilhas e
brilha meu amor nas tuas á
                                      guas



Jamerson Lemos
em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)

AS SUBURBANAS




Passeia no Subúrbio
meu Ócio. Dominga
paisagem. Distúrbio,
quitanda/pinga.
   Morre eletrocutado
operário na Ininga.


Segue o seu passeio o Ócio
tranquilo em sua ociedade.
Vê sapateiro com bócio,
casas de "caridade",
seguem Cachorra e Ócio
nos Subúrbios da Cidade.


Meu Ócio em cio-Cachorra
passeia a pé.
anda que nem a porra
no Itararé.
vê o velho povo
e a zorra.


Passa nos Três Andares
meu doce Ócio, meu bem,
e ali não há cismares ~
se conversa terra/mares,
a loucura dos Palmares,
a influência dos teares,
a via cega dos ares ~
cousas que nada têm.


Na Suburbana Redenção
passam o Ócio e a Cachorra ~
noturna caravana (Lei Arras)
pague-se de todo o coração
ao poeta~corretor a comissão ~
diz a cachorra e desamarra
o malote das costas e dá a mão
digo, a pata, ao Poeta e sarra
papo tantos de ilhas, penínsulas,
                        araras.
Tomam cervejas, canas, nessa rota,
   o Poeta se lembra que tem gota,
por fim, enfim, foi boa a farra.


Danado, corre e se persegue
como cachorro atrás do rabo.
Segue na frente e se segue ~
   é pouco de Deus e diabo.
Diz ter um livro no prelo,
   desliza liso em quiabo,
ignorante, doido e brabo,
passa no Monte Castelo.


Chega no Promorar
depois de passar no Saci
e ali não quis ficar,
conversa daqui,
conversa de lá,
come biscoito Pilar,
laranja Cliper
e a Cliper já não há,
entretanto, cabreiro, em pé,
toma café.


Pensa também Fratelli~vita
indo ao Parque Piauí,
(Fratelli~Vita não há.
O que é Fratelli~Vita?) ~
A Cachorra lhe pergunta.
Toma um gole de birita
Pernambuco Autoviária
Lhe surge à alma precária,
se lembra do Bongí
                          Camaragi
                                   be
                           Capibari
                                   be
                              Beber
                                  ibe


Saltando de bar em bar
poisaram no Encruzilhada.
Noturnamente madrugada,
mas Maury ali está
e mete cachaça neles
e pede para fechar.
O Ócio começa a chorar,
lembra do seu bom papá
da sua boa mamã,
também lembra da babá,
tem saudades da titia,
promete voltar um dia,
se piram pro Mafuá.


Descem no Mafuá
e voam para o Marquês
(direito de ir e vir.)
O Ócio doce, cortês,
declama os versos de Inês,
filosofa do porvir.
Pula o Ócio, pula pula
de alegria, cachaça, imbu,
se transforma numa mula,
(siriguela, tanja, caju,)
ali o bom pulula.
Pílula no Povo!
                      Pílula!


Vão à casa do Jair,
a Cachorra, já sem prumo,
resolveu tomar seu rumo
e dali se despedir.
Ócio sozinho se comove,
toma vat 69,
        tira gosto com couve,
delicia-se com Beethoven,
        tratado tal como Sir,
        pede para sair.


Depois de tanto trabalho,
Ócio sai do Itaperu,
Lembrando Caruaru,
que ali tomou Pitu,
e passa pelas "Malvinas",
vê um carro da Eturb,
(adeus, adeus, Primavera!)
devagar passa da ponte,
Nós e Elis lá defronte,
bebe um gim com vermouth
e chega ao Jóquei Clube.


Pois, bom, dali pra frente
mais nada o menino viu.
Não viu nem um navio
e ficou a ver navio.
(Menino de alma assanhada!)
Mas ali de tudo havia
e isto o menino via.
(Avia, rapaz, avia!),
uma via é uma via!
~ Ali não havia NADA.




em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)