11.11.13

EDIFICADO




Morto
o cemitério São José
constrói edifícios no subsolo
do além
enquanto os rastros
de cascas de ovo de codorna
e amendoim torrado
contornam as curvas centenárias
da avenida.



Nathan Sousa
enviado pelo autor

PIAUIZEIROS




Cabelos moicanos
desbravam a praça João Luiz Ferreira
armados com cadernos embolados
debaixo dos sovacos. 



Nathan Sousa
enviado pelo autor

TER EX INA




Centro da cidade:
movimento nas calçadas
sem camelôs.

Caldo de cana com pastel de carne
do Frigotil na lanchonete
do chinês.

Teresina não tem
onde cair 
viva. 



Nathan Sousa
enviado pelo autor

É NOITE




É noite,
como todas as noites
indecifráveis
por onde arrastei
minha sombra sinuosa

(sinuosa
e fragmentada
tal as ruas
e avenidas
de Teresina)

por onde eu temperei
minha carne
nos sais da distância
em idade imprópria
para o adeus.

Esta noite
povoada de silêncio
e de vozes
que se eternizam
como música
doída
não é outra
senão
a mesma noite
que outrora
revelou para sempre
o que na matéria se escondia.

Noite
noite de iluminação amarela
noite sem vultos
noite tão somente noite
hoje
ontem
onde eu estive
sentado na janela
do quarto dos fundos
da casa de minha avó
ou à mesa da cozinha
às 03:30h
debruçado
sobre a barca de Dante.

Esta noite
– esta mesma
e eterna travessia
de minhas retinas
em ruínas –
pode ser apenas a angústia
de um dia antes do raiar do dia

ou um alarido surdo
e indecifrável
como todas as luas
por onde arrastei
minha dor sinuosa

(sinuosa
e fragmentada
tal as ruas
e avenidas
de Teresina).



Nathan Sousa
enviado pelo autor

AQUELAS FLORES AINDA SALTAM NO MEU CÉU!




Quase nenhum garoto do bairro Primavera do final da década de 70 e início da de 80 deixava de admirar os paraquedistas (o hífen foi retirado para não atrapalhar a queda) que executavam suas manobras lá pras bandas da curva do rio Poti, talvez perto da floresta de fósseis que há em seu leito, depois da ponte da Frei Serafim. Com seus paraquedas redondos, aproveitando a corrente de ar que os levaria até a pista do aeroporto, passando por cima de nosso bairro (que beleza!); aquilo era surpreendente para qualquer criança setentoitentona, e isso não era diferente para mim, que vinha, como já o-disse noutras vezes, de uma cidadezinha do interior, que me-madrastou mansamente: essa Alto Longá – domundopróximo – distante. Em Teresina, nesses idos, olhávamos os meninos para cima, à espera de todos (e, em expectativa, de um) pularem.

Hem-hém. Quão fácil era prender a atenção de crianças assim! Sim, tão pouco era necessário. E, imaginem só, assistir à audácia daqueles homens: o desafio de confiar em equipamentos, em tecnologia de afronta à gravidade – dane-se Newton; todos queríamos vê-los saltando davincianamente para um voo planado por asas de tecido sintético! Redondinhos. Sim, os paraquedas ainda eram os redondos, mesmo o italiano engenhoso tendo-os pensado piramidalmente mais pesados e quadrados e os nossos contemporâneos, mais leves e retangulares, com a possibilidade de o paraquedas ter manobrada a sua direção. Então, os meninos de olho no céu, à procura dos pontinhos coloridos que desabrochavam uma flor salva-vidas; perigosa ideia do desejo humano do voar, oqual, ainda hoje, renova suas asas com as penas de outra tecnologia, criada da ciência. Quer ler? Hoje, agosto de 2011, aposto se há tanto alguém nesta ilha terrena que ainda queira voar com o grego, usando as asas de cera que Dédalo criou para si e seu filho, Ícaro (não escrevo do paraquedas de Da Vinci, porque isso já foi feito; a foto que ilustra esse texto comprova-o!).

É, o não ter asas para voar deu ao humano a possibilidade de trabalhar com as mãos (estendam-se os braços), esses Oficiais de Justiça do cérebro. Foram essas mãos, por exemplo, que criaram essa possibilidade de sobreviver qualquer um que pule de qualquer lugar (estático ou célere) estando a tantos metros do chão. Claro que esse “qualquer um” foi somente para ilustração de que há pessoas que fazem isso. Mas não o-é para todos. Para nós, os meninos que observávamos estupefatos de alegria aquela loucura de se-atirar de um avião a mais de dois mil metros de altitude, ainda não havia nada que se-comparasse a isso. E, nesta linha mesma, me-vem à mente o nome dum homem (claro que havia outros com ele!); não, seu apelido. Louro. Loro (pra confirmar a nossa “morte do ditongo”, já praticada pelos espanhóis, de mais antiga língua). 

Quem era esse cara? Ainda hoje sei pouco sobre ele. Certa vez, aqui, em Teresina, encontrei um seu filho, um fotógrafo, de nome Cleyton, não lembro bem (sei que o-conheço), que falou qual era o verdadeiro nome de Louro, seu pai, mas infelizmente perdi isso em minhas agendas; foi mal, Cleyton (nem sei se seu nome é escrito assim), mas talvez alguém possa reconstituir os fatos dessa história teresina, que, junto-com os meninos, também eu vi. Isso, se não já o-tiverem feito. Talvez alguns poucos possam-se-lembrar de Louro e de seus companheiros de saltos. Eles são os primeiros em nossa capital? Eles, de fato e de saltos, não deixaram quaisquer seguidores pelos ares dessas suas quedas de -longe? Quem sabe? Sei que foram ousados. Nem sei se há ainda, aqui, nesta capital, algum grupo que pratique paraquedismo. Aliás, há paraquedismo ainda, aqui, em Teresina, como havia naquela época?

Vixe, eram muitos saltos! Acredito que fosse uma espécie de clube de paraquedismo. Não posso confirmá-lo, mas isto, sim: o Louro era “o Cara”. Era o nome que os caras (como os meninos nos-chamávamos) mais pronunciavam. Todos, abestalhados com aquela habilidade, que vem desde os acrobatas chineses, precursores do paraquedismo de “altas altitudes”, até a ideia-cabeça de Leonardo, o iníco de uma sequência de ousadias, que ofereceram ao público um Fausto De Veranzio, um Sebastan Le Normand, um Jean-Pierre Blanchard, que já saltava com paraquedas dobrável de seda, ou um André-Jacques Garnerin, o primeiro a desafiar as grandes altitudes, ou uma Genevieve Labrosse, a primeira mulher, e sua sobrinha, Elise, que fez mais de 40 saltos, o que, para a época, era algo surpreendente. Não; somente eles eram ousados a tal ponto no céu. Ah, esses saltos sempre foram perigosos, e nossa expectativa de meninos roía as unhas e nossos heróis tiveram que pagar o preço com suas próprias vidas-próprias e eu, de boca aberta ainda e olhos espremidos, calibrando o olhar, e este texto, por réquiem profano, saltando do meu cérebro, pulando com as mãos nesta tela. 

Ao Louro, estas “memórias póstumas”. Elas, que, pelo céu de minha boca passam palavras, puladas por mim, a sonorizar as imagens, que gravadas no “paraquedas do meu cérebro” ficaram a saltar. Não eram elas a borboleta preta nas rodas do quarto, mas pareciam floresinhas pequeninas (bem pituibinhas!) no céu do meu bairro, daquela cidade do tempo em que os meninos, na primavera das idades e no Primavera de suas casas, estavam de olho duro no céu. O salto que eu ainda espero é o de Louro. Como, hoje, o paraquedas pode ser manobrado pelo paraquedista, como tento fazer com estas palavras que saltam de mim num céu de página branca (papel ou tela), quero que ele caia dentro deste poema:



Outra inscrição para um túmulo no ar (o segundo voo)


Meninos,
nas matinês dos
domingos, lá pras
bandas da curva do
rio – com o Poti abaixo
(sim, uma garantia?) –, um
passarinho de metal desovava
no céu sementinhas; e vinham caindo
velocíssimas para, em seguida, abrirem-se
como florzinhas: pequeninas ilhas de cores teresinas,
paridas pelo voo dessas aves ocas, loucas pelas alturas terrenas!
Os meninos esperávamos, sobretudo, sobre todas as altitudes, pelo Louro,
o principal pontinho do grupo dos pulos nos ares do abismo, o príncipe dos
comentários dos caras do bairro, do Primavera  (sempre abismados, os meninos); entanto, estávamos tão abaixo de entendermos a altura dessa Física, de um artefato
saltado do entendimento davinciano e longíquo. Ah, seos meninos, eu vi também os
saltos do Louro pelo brancinzazul do céu do meu bairro soltos; primaveral flor do céu
que voa, e todas voam: o pouso sobre o desejo tão grande e tão baixinho (mítico?) de voar acima dos telhados dos olhos primaverinos. – Lá vai o Louro saltar!– Lá vem o louco! – Lá vai no vento indo. – Vai pro aeroporto. Esse foi o salto que caiu dentro do encanto dos meninos de boca aberta: – Quede os paraquedas? – Quedê? – Cadê? Que pena. Ninguém mais os-espera. Como flores soltas na corrente de ar: elas, pelos louros do desafio à queda-livre, presas dentro deste poema, dos céus das páginas, saltam nos









olhos
dum menino
teresino.



Luiz Filho de Oliveira
enviado pelo autor

DOUTOR GOJOBA, DO PRIMAVERA PRO MUNDO, por Luiz Filho de Oliveira



Dentro da política habitacional planejada pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) para Teresina, a construção do conjunto Primavera, em 1966, foi a terceira obra desse tipo na capital piauiense, antecedida que foi pelos conjuntos Tabuleta e São Raimundo. O Primavera fez, pois, parte da estratégia do governo para atrair a população do interior do Piauí para a “Cidade Verde”, como Coelho Neto a-cunhou (que trocadilho escroto!). Isso deu certo. A partir desse período, a população da “primeira capital planejada do Brasil” passou de noventa e tantos para quase quatrocentos mil habitantes. Somente nos dois primeiros anos desse projeto, de 1966, época do primeiro conjunto habitacional da capital, até 1968, quando foi construído o Parque Piauí, o quinto conjunto, foram vendidas à população cerca de três mil unidades habitacionais. Haja casa para tantos casos!

O meu,
o-escrevo: a atração de minha família, vinda do Alto Longá em 1974, também se-deu por esses planos e planejamentos. É. Também, porque mamãe passou um tempão nas oiças de papai pedindo pra ele nos trazer para a capital, para estudar. Ladainha de mãe, coro de professora; alguns de vocês sabem. Persistência, mundivisão, sabença. Assim – ou asnão! –, o Primavera entra nisso, sim; e entramos nele em um “misto” (um caminhão com uma boleia de passageiros e uma outra parte, uma carroceria para cargas) fretado por meu pai para trazer-nos e a nossa muda, que dizia tudo – éramos “matueiros”! –, a esta Canaã urbana. Ao chegarmos à “Capital Mafrense”, nossa família, nove pessoas, foi morar em frente às Quadras B e C desse conjunto, no bairro Primavera, que surgiu, claro, a partir daquele. 

Foi, então, que o nosso cenário mudou completamente: dos bois e bodes a carneiros e cabras, que nos-rodeavam na Fazenda Criolis, de nossa família, passando pelas paisagens em volta da casa na rua..., em Alto Longá, chegamos aos “cabras de peia”, comadres e “caras” dessa cidade. Cenário novo; novas personagens. E, ainda mais, um novo palco para nós: papai comprou uma casa nova na outra esquina do mesmo quarteirão onde morávamos, pois a que habitávamos era de aluguel. Obras nessa nova casa, ainda inacabada: paredes sem reboco, piso bruto, banheiro externo, cerca de arame... É melhor chamar um pedreiro. Obragem. 

Era uma vez, então, o Gojoba, o pedreiro da área, do bairro, ou melhor, do conjunto. Gojoba morava lá embaixo; é fácil chamá-lo. “Às vezes, até no domingo dá, se eu não tiver bebendo”. Gojoba era querido de todos, principalmente, dos filhos do seo Domingo, o alfaiate. Netão, Pedro Cão, Zé “Orea” e Paulo Cenoura, se tiverem bebendo, o Gojoba tava lá. E foi desse jeito que aconteceu uma anedota conhecidíssima no Primavera, entre os  moradores das décadas de 70 e 80, claro. Ela virou até piada na boca do Dirceu Andrade; alguém muito próximo (mais de mim do que dele) é que me-disse. É, foi hilário. Caso de anedota mesmo. História pra boi sorrir!

Mas não vou contá-la literalmente; tentarei somente escrever o que possivelmente tenha havido. Não sei se o Pedro Cão já havia-se-formado ou se ainda estava cursando Medicina na UFPI. O certo é que haveria uma festa, parece-me que ligada aos acadêmicos desse curso. Pedro Cão, claro, deveria ir. Aliás, sempre ia a esse tipo de comemoração. Só que a decisão foi tomada numa bebedeira da turma, talvez na quitanda do seo Juarez. Pois não é que o Gojoba também estava lá. Pois é, o pessoal decidiu que levaria Gojoba para a festa. Aliás, Doutor Gojoba; era assim que eles iriam apresentá-lo a todos. Nisso, certo, havia uma boa dose (dá-lhe, cana!) de preconceito ou de previdência quanto a possíveis preconceitos de outras pessoas. Afinal, Gojoba era um simples pedreiro. É, Gojoba ia ser o Doutor Gojoba, o que é que tem?

Botaram uma beca no Gojoba, e vamos lá. Festa vai, bebidas vêm; Gojoba já estava entrosado com todos, inclusive, com as colegas de curso de Pedro Cão. Era Doutor Gojoba pra cá; Doutor Gojoba pra lá. “Doutor Gojoba, o senhor acredita que...”. “Doutor Gojoba, o senhor já estudou aquele caso...”. “Doutor Gojoba...”. Gojoba, a princípio, achou graça dessa parada de “Doutor”. “Porra, aqui tá chei de coroa!”. Curtiu à vontade, principalmente, porque as acadêmicas o acharam muito engraçado. E a bebida descendo a goela, gelada ou quentíssima. E a cabeça foi enchendo. “Doutor Gojoba, cadê seu copo?”. “Doutor Gojoba, espere mais um pouco”. “Doutor Gojoba, isso; Douto Gojoba, aquilo”. Gojoba ficou cheio disso e se-levantou com a fala-desfecho da anedota:

– Que porra de Doutor Gojoba! Que nada! Eu sou é pedreiro e vou é embora; amanhã eu tenho que acordar cedo, pois eu tenho é três metros de muro pra levantar!



Luiz Filho de Oliveira
enviado pelo autor


REINSCREVE UM POETA A SEU PASSO A NOVA CAPITAL & A PASSADA CAPITANIA DE PIAGUÍ

                                            
                                               A Cineas, homem com letras, de cimos Sãos & Santos 


tristeresina: um quê de semelhante
estás ao que era nosso antigo estado
(rico de nativos mortos por gados)
em este mote alheio & cambiante

se a ti tocou-te a máquina mercado
esse ouro que apaga muito brilhante
a nós todos aqui tem-nos-tratado
com os dous ff dum poema dantes

deste estado – a quem não deste por renques
as carnes como o-fez à gente ruda
de Bahia Pernambuco Minas (mortes!) –

há quem alegoricamente tente
fazer ainda uma vaca bojuda
para carnes & poemas de corte

(De Oeiras, Salvador; Ouro Preto, Recife a Teresina, em estados de Brasil.)
Poema classificado em 3º lugar no concurso "Soneto para Teresina"
Promovido pela TV Cidade Verde, Teresina: 2008

Luiz Filho de Oliveira - síntese biográfica






Luiz Filho de Oliveira é o “falso pseudônimo” de Luiz Francisco de Oliveira, nascido em Campo Maior, Piauí, em 1968, filho do seo Luizim e da dona Francisca, de Alto Longá, Piauí. Casado com Suzy Reis. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Piauí (1996), professor de Língua Portuguesa há 20 anos – daí, talvez, a sua predileção pela Literatura. Já se-inscreveu nessa arte com a publicação de dois livros de poemas: "BardoAmar" (Teresina: Ed. do Autor, 2003; Fundação Cultural do Piauí, 2005.) e "Onde Humano" (Teresina: Nova Aliança, 2009.). Este foi selecionado e subvencionado pela Fund. Mun. de Cultura Monsenhor Chaves; aqueloutro, classificado em 2º lugar no Prêmio Torquato Neto de Poesia, em 2000, da Fund. Cultural do Piauí. Participou da Antologia Poética do Concurso de Poesia Antero de Quental (Campinas, Ed. Komedi, 1999), realizado pela Escola Federal de Engenharia de Itajubá, Minas Gerais, e escreveu também uma peça teatral, a qual foi representada no Teatro Ferreira Gullar, em Imperatriz, Maranhão, em 2003, dirigida por Raimundo Pinho Gondinho. Atualmente, está preparando a edição (impressa ou virtual) de seu terceiro livro de poemas, "Das Bocadas Infernéticas". Desenho: Luiz Filho de Oliveira por Adriano Lobão Aragão.

A MORTE E AS MORTES DE ZÉ MAGÃO


Numa manhã de cristal (ou teria sido numa tarde de chumbo?), dessas que só ocorrem em Teresina, Zé Magão arribou da cidade e foi garimpar incertezas em Santarém. Zé, senhor dos subúrbios de Teresina, embrenhou-se no cipoal de um mundo desconhecido, armado de serra, bigorna, maçarico e poesia. Deixou para trás versos tresmalhados, dívidas miúdas, saudade roendo o peito dos amigos. Soverteu: tornou-se incerta a notícia. Vez que outra, um garimpeiro, um mascate, um peregrino apontava por essas bandas, trazendo a má notícia: "Zé Magão morreu". Ora morrera de malária, afogado, assassinado; ora, picado de surucucu, soterrado num garimpo, de causa não sabida. Velório sem defunto, os amigos reuniam-se, recontavam casos acontecidos nas ribanceiras do Poti, bebiam cachaça, choravam tristeza. Na semana seguinte, a boa nova: um certo indivíduo, com jeito de tuiuiu (misto de Zé Ramalho com Gonzaguinha) fora visto num boteco da periferia de Santarém recitando versos para a lua. Não havia dúvida: Zé Magão estava vivo. Os amigos reuniam-se, recontavam casos acontecidos na coroa do Parnaíba, bebiam cachaça e choravam alegria. Mas quem era mesmo esse Zé Magão de tantas mortes anunciadas? Consta que se chamava José Ribamar Ribeiro, nascido em Teresina, em 30 de julho de 1950. Aluno de Dona Ditosa, caçador de rolinhas, pescador de mandis, cidadão das ruas. Estudou na Escola Técnica Federal do Piauí, de onde saiu diplomado em topografia: sabia, portanto, onde pisava. Por força da necessidade, se fez mecânico, serralheiro, soldador. Por puro prazer, poeta de versos tortos e humor corrosivo. Andou participando de algumas "antologias" mimeografadas: CARNÊ DE VIAGEM, CORAÇÃO DE DOIS TEMPOS, DANÇA DO CAOS, TOPADA, POESIA LIVRE. Em 86, publiquei, pela Coleção Folhetim, um poema seu "OS CAMELÔS", paródia do hino nacional, tendo com pano de fundo o universo dos ambulantes, camelôs e desocupados que entopem as ruas de Teresina. O livrinho, ilustrado com as fotos da Rosinha, percorreu ruas, becos e bares da cidade, conforme convinha a um poeta do naipe do Zé Magão. Por algum tempo, as notícias cessaram. Eis que, na semana passada, pela boca do poeta Menezes y Morais (quem também já esteve morto) chega-nos a notícia da última morte do Zé Magão. Foi aí que, entre comovido e indignado com Deus, lembrei-me daquela passagem terrível do livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, quando Jesus, pronto para ressuscitar Lázaro, é impedido de fazê-lo por Maria Magdala (Madalena) com um argumento irrefutável: "Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes". Para mim, vivo ou morto, Zé Magão sempre será o poeta que, com extraordinário poder de síntese, disse a mais bela e dolorosa das verdades: "No coração/ uma andorinha/ faz verão", na memória, também, Zé.

Jornal MN, 27 de julho de 1997
em As Despesas do Envelhecer 
Teresina: Corisco, 2001

TÃO TERESINA, QUE DÓI, Cineas Santos

Ao poeta Paulo Machado

Era um tempo sem colheita / mas havia a crença:/ viver não doía tanto. Bem que poderia ter sido assim; não foi. Numa manhã de cristal, dessas que só acontecem em Teresina, fui literalmente despejado na Praça Saraiva. Era maio de 65. Nos bolsos, dezoito cruzeiros, uma carta de recomendação, que se revelaria inútil, e um endereço de um quase-parente que jamais procurei. Nos olhos, a poeira da estrada e o espanto diante do novo. No corpo inteiro, o medo latente.

De cara, três surpresas. A primeira, preocupante: a quantidade de carros trafegando nas ruas.. Carecia tomar tento pra não voltar para a aldeia convertido em notícia ruim. A segunda, estimulante: a abundância (taí a palavra adequada!) de mulheres por toda parte. De onde eu vinha, só se via algo parecido no dia da procissão do Padroeiro. A terceira, elucidativa: o Parnaíba. O risco inexpressivo dos manuais de geografia, na verdade, era uma veia aberta, generosa, encharcando de vida a terra, os bichos e a gente do Piauí.

Depois de zanzar por pensões ordinárias, atraquei na UPES (hoje, CCEP) onde já amontoavam outro náufragos. A casa poderia acomodar, com desconforto, dez pessoas. Éramos oitenta! Normalmente, faltava água e não havia um único banheiro, o que na verdade não fazia tanta falta, já que também não havia o que comer. "Deus só dá o frio..."

Desbravar a cidade era um desafio. Na P2, as mulheres, como animais em exposição, circulavam graciosamente. Os homens, mãos no bolso para disfarçar, conferiam, aferiam, faziam propostas. No coreto, a bandinha da PM atacava de dobrados e marchinas, "programa de velho". Na parte alta, recrutas bolinavam curicas. Na Paissandu, a noite nunca envelhecia. Estrela, Amambay, Fascinação: boleros, varizes, cerveja e gonorréia. Eh, Antônio Leiteiro!

No Clube dos Diários, a fina flor da burguesia embalava-se ao som do Barbosa Show Bossa em "tertúlias", onde havia um pouco de tudo: namoros, conchavos, negócios, jogatina. Como um cão de guarda, Marcelino conferia o pedigree de cada novo sócio e escorraçava os indesejáveis. E eu comendo com a testa.

No Carnaúba, homens e ratos disputavam o mesmo espaço, com ligeira vantagem para estes que, na condição de provadores, beliscavam tudo sem pagar nada. No Flutuante, meninos entanguidos e piabas elétricas disputavam migalhas, sob o olhar complacente das lavadeiras seminuas. 

Nos programas de calouros, Ruy - o primeiro cabeludo da cidade - fazia paródias geniais: "Garota de Timon nunca teve vez / Nem que seja bonita / Nem que fale inglês / Lá é tudo tinindo / E quem governa é o padre Delfino". Valdenir, com voz chorosa, cantava "Maria Helena", sempre "a pedidos". Nos saraus familiares, Silzinho e Assis Davys cantavam "Perfídia" com sotaque caribenho.

Nos embalos jovens, Brasinhas, Metralhas, Sambrasa arrepiavam. Luz e cor: calça boca de sino, bota calhambeque, rum com coca-cola, minisaia de napa, milk-shake. Nas mãos afoitas e nervosas, passeavam inicentes baseados. "Me segura que eu vou dar um troço!"

Nas emissoras de rádio, "o mundo em ondas sonoras". A. Tito Filho vertia cultura pelos poros; Ary Scherlock esbanjava glamour; Figueiredo fustigava os desafetos (todo mundo) com o seu Almanaquinho do Ar; Roque Moreira comandava o Seu Gosto na Berlinda; Mariquinha e Maricota estilavam veneno; Al Lebre enchia o saco de meio mundo com seu chocalho madrugador; Deoclécio Dantas e Carlos Augusto vergastavam políticos e delinquentes, e Dom Avelar, com sua autoridade de pastor, apacentava o rebanho com a "Oração por um dia feliz". Tudo tão Teresina!

No Theatro 4 de Setembro, rolava tudo: Maciste, Tarzã, ídios, caubóis, tapas e beijos. No carnaval, realizavam-se os concorridos bailes promovidos pela Prefeitura, com direito a tombos no piso inclinado. Na Semana Santa, a exibição da indefectível "Tragédia do Gólgota" encenada por Santana e Silva. Nas página de O Dia, Fabrício Arêa Leão escrevia crônicas laudatórias em aramaico, enquanto Dona Elvira atiçava a "fogueira das vaidades" dos novos-ricos. Eh, cidade amada!

No Lindolfo Monteiro, Gringo, Vilmar, Evandro e Sima agitavam a galera, enquanto Carlos Said desancava os "energúmenos" em linguagem tão pomposa, que muitos se sentiam lisonjeados. Mas o melhor mesmo era ofender a mãe do juiz, sabendo que ele estava ouvindo tudo. Te segura, Braz!

E tão envolvido estava, que nem me dei conta de que a cidade crescia, inchava; cercada de favelas, prenhe de cursinhos, panificadoras, motéis, templos evangélicos, casa lotéricas, carros importados, mendigos, telefones celulares e o escambau... E aqui estou eu, bestamente, amando essa pobre cidade transitória, como se fosse a mais importante do mundo. E é!


em As Despesas do Envelhecer 
Teresina: Corisco, 2001

PRAÇA PEDRO II, Cineas Santos


Umbigo do mundo
corações e pernas em descompasso
sonhos em ebulição...

Emoções no Rex
conchavos no Carnaúba
negócios no Acadêmico
sabores na Predileta

E os desejos represados
desaguavam na Paissandu
onde a noite não envelhecia.


em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

10.11.13

TERESINA, Cineas Santos


Aos que chegam
(náufragos, arrivistas, mercenários)
a cidade sorri
e finge que se dá
mas que não ouse o estranho
nega-lhe um capricho
desvendar-lhe os segredos
porque então anoitece...
Amante voraz do ócio e da usura
a cidade conhece os seus
(pelo tinir das esporas, pigarro, perfume)
e só a eles se entrega sem reservas.


em Presença da Literatura Piauiense
Luiz Romero Lima | Teresina: 2003

BUSCA, Cineas Santos


caminho pelas ruas de minha cidade
pesa sobre mim o sol de outubro
não tenho pressa nem medo:
conheço todos os becos
__________________atalhos
______________________& riscos
a cidade está vazia de emoções e sustos:
nenhum rastro não conhecido
nenhum crime não consentido
nenhum desejo não controlado
a tarde flui lenta e pegajosa
e o coração alheio a tudo insiste:
busca você

ah meu coração - descarrilhado trem
meu coração é sempre o último a compreender

crimes amarelam nos jornais
desfolham-se girassóis aflitos
pardais tecem a improvável primavera
e a tarde é um convite ao
____________________p
____________________r
____________________e
____________________c
____________________i
____________________p
____________________í
____________________c
____________________i
____________________o

a cidade se veste de noite
navalhas passeiam no ar:
a morte espreita ferofascinante
e o coração alheio a tudo insiste:
busca você
ah meu coração - bandoleiro kamikase
meu coração é sempre o último a compreender

vagueio pelas ruas de minha cidade
e não as reconheço
e não me reconheço
desa (r) mado avesso só
e o coração alheio a tudo insiste
nessa busca - quase desespero
como quem procura reatar o gozo
interrompido entre o flagrante e o tiro
a morte bafeja a noite
e um anjo decaído sentencia:
- é tempo de sofrer sofrer e mais sofrer
até que o corpo frio extenuado
se exorcize de qualquer desejo
e o coração alheio a tudo...


Cineas Santos
em Miudezas em geral 
Teresina: Livraria e Editora Corisco ltda, 1986

Cineas Santos - síntese biográfica




Cineas dasChagas Santos (20/09/1948) nasceu em Campo Formoso, município de Caracol, sertão do Piauí. Poeta, cronista, intelectual, professor, agente cultural, advogado, editor e livreiro. Pertenceu ao Conselho Estadual de Cultura. Desde 1965 vive em Teresina, capital do Piauí, onde desenvolveu trabalho de agente cultural, atuando em diversas áreas, há décadas exercendo atividades no cenário artístico-cultural local. Em 1976/1977, fundou, junto com o poeta Paulo Machado e outros companheiros de geração, o jornal alternativo “Chapada do Corisco”. Proprietário da Corisco (livraria e editora), publicou vários autores piauienses. Professor de Português e Literatura de várias gerações de estudantes piauienses. Foi um dos idealizadores e organizador do SaLiPi (Salão do Livro do Piauí), evento que anualmente reúne livreiros, editoras e público leitor em torno a diversas atividades culturais, palestras, debates, oficinas e exposições. Também é proprietário da Oficina da Palavra, espaço cultural teresinense, e coordenador do grupo A Cara Alegre Do Piauí, projeto de interiorização da cultura – música, literatura e artes plásticas. Autor da letra do Hino oficial de Teresina, em parceria com o músico Erisvaldo Borges, que compôs a melodia. Apresenta (desde 10 de maio de 2009) o programa televisivo intitulado “Feito Em Casa“, sobre literatura, arte e cultura centradas na realidade local piauiense. Bibliografia: Miudezas em geral (poesia); Tinha que acontecer (contos); ABC da ecologia (cordel); Aldeia grande (humor); O menino que descobriu as palavras (infantil); Nada além (poesia) e Ciranda desafinada (infantil), entre outros.

8.11.13

"Teresina é sol"




    Teresina é sol
           e dó
nenhuma outra nota
            dá.



enviado pela autora

AOS IPÊS FLORIDOS NO CAOS




Hoje me agride o lirismo ufanista
me cansei de flores coloridas e perfeição
quero a falha
lamber o sangue e as feridas

Hoje o que me faz poesia
é o calor subindo do asfalto
a explosão dentro do grito
real, cru e seco

Hoje o humano me toca
no cerne e na carne,
quase sempre quente,
no olho violentado
da imundície do crepúsculo

Hoje, no desafio da lógica,
fazer do concreto música e poesia,
só me cansa o lirismo do impossível
literatura de beira de abismo
amor invisível ao chão



Laís Romero
em Revista AO - número 1
Teresina: junho de 2011

Laís Romero - síntese biográfica




Laís Romero é mãe, professora de Literatura e escreve. Editou a revista de Literatura Trimera (seis edições), participou do coletivo de poetas Academia Onírica e editou os dois números da revista AO. Tem poemas publicados nestas revistas e na revista virtual Desenredos nº14. Seu livro "Alecrim e o sufoco atmosférico" está para nascer, previsto para 2014.

6.11.13

CANTEIRO DE OBRAS 2013, Renata Flávia


e a dança foi cancelada o som desativado. a polícia não bateu mais na porta e a graça foi posta a baixo. desmantelaram o coração do centro, de todos os nervos de lembrança só restaram escombros, pé de manga, estacionamento. desinstalaram a poesia e o canteiro foi esvaziado e aos poucos as marretas terminaram a porradas os trabalhos. duros golpes não demoraram a transformar em sucata o casarão antigo das nossas primeiras emboscadas – porrada! o coração do centro morto agoniza na sua última morada. porrada.

Renata Flávia
enviado pela autora

PRAÇA RIO BRANCO, Renata Flávia


deus me renegando compreensão
com uma igreja de costas
para minha tórrida visão
de cara lavada de suor
o sol imprensando meu estomago
como duas mãos
eu inerte entre as luzes
que só ascendem quando paro
meu coração largado
meu coração


Renata Flávia
enviado pela autora

Renata Flávia - síntese biográfica


Renata Flávia por Caio Bruno

Renata Flávia nasceu em mil novecentos e oitenta e nove em Teresina, Piauí. Formada em História, atualmente vive em uma biblioteca pública nos horários comerciais. Com poemas em revistas, jornais, antologias, sites e blogues, tem publicado o livros Mar Grave (2018, Moinhos) e Lustre de Carne (2019, Moinhos). email: renata.flavia07@hotmail.com 

CARTÕES-POSTAIS DO FIM DO MUNDO




o olho em falso vacila na transversal:

no cheiro do medo, o faro desmedido
no horizonte, uma procissão de pássaros fosforescentes
há sol em cada canto do dia e os orixás fazem poemas-crianças
modigliani montado em um ganso
alimenta os peixes com a estranha beleza de suas mulheres.

uma tempestade de insônias sopra nos olhos:

os faróis acendem uma cadeia de mandíbulas
os vestidos caem do céu no museu-retina-de-porcelana
uma filha de lilith rola à beira do lago das danações
grandes doses de pílulas de café são dadas às estátuas da cidade e
baudelaire translúcido flana na rua do hospício.

– os corações saltam de pára-quedas
e os turistas fazem festas nos cartões-postais do fim do mundo.



Demetrios Galvão
em Insólito 
Fortaleza: Editora Corsário, 2011

UM FRAGMENTO DA DECRÉPITA PROVÍNCIA




teresina explode num jogo de fliperama, entre um dicionário e o peso da mediocridade, suspensa como um móbile, cheia de conceitos e recortes obtusos. face feita de algo sem passado, estéril ao que se movimenta e o barulho das sementes é estrondoso, raízes aos montes e prédios sem alma se erguendo como bambus na beira do rio. fluxo desordenado de matéria. o bolo abandonado no prato de beirada quebrada lembra algo velho descartável sem utilidade desafiando qualquer velocidade ou dinâmica e assim de graça eu digo que quero te beijar e esquecer que estou preso. caio fernando abreu vomita na minha cara e não me mexo falo reajo estático como o meio-fio, apenas margem, o nexo às vezes é só uma conseqüência do que pode ser o absurdo desfilando de um lado pro outro feito bicho de zoológico. teresina explode em clichês gordurosos.



em Insólito 
Fortaleza: Editora Corsário, 2011

A PREVISÃO DO TEMPO É UMA FALÁCIA


p/ mardônio frança e nuno gonçalves

os brinquedos, os jogos de adivinhação, a cidade e suas senhas-salamandras, as mandalas hipnotizadoras, a rota da barbárie e as memórias que entregam o seu coração aos bandeirantes, que entregam seus nomes, sua prole, seus sonhos de se tornarem camaleões ou peixes ou águias ou fogo. há setas que apontam pro norte, há uma confusão nos sensores, sentidos, os poemas-malabares cospem fogo, os cheiros e o sexo estão longe, o mar chega para lamber e sarar as feridas, o vento é chicote bem vindo nas costas, os brinquedos agora obsoletos, as conchas do mar, o pára-quedas está nas costas esperando ser aberto, a cidade colméia cria seus doentes mentais, a cidade frankstein devora seus doentes mentais, a cidade é uma seqüela aberta, ferida que nunca sara, cores mortas, portas fechadas, pernas e braços e cabeças e troncos espalhados pelas calçadas, os desenhos que se pintam são hecatombes, terremotos, nada de cores de almodóvar, a cada esquina um besouro a descer pela garganta, a sala de estar é um calabouço, um cala boca, uma mordaça, moscas cercando os cadáveres da cidade-hospício, cercando as mentiras e a dor da lembrança, pegamos carona em corpos alheios pra esquecer os sonhos ruins, há lugares que vendem coisas que já aconteceram, que já tocaram, que já foram vistas, que já foram lidas ou faladas, a cidade é uma sucata velha teimosa.



em Insólito 
Fortaleza: Editora Corsário, 2011

SÁBADO DESABA EM ANDORINHAS


e alguns meninos idiotas encontraram pelas cozinhas
pequenas andorinhas com muletas
que sabiam pronunciar a palavra amor.

garcía lorca


a luz do dia acolhe o amor que acorda. as andorinhas brincam no parapeito dos prédios sem se preocuparem com seus pais, incorporando exus e fazendo acrobacias perpendiculares ao canto da multidão. não há como remendar os rios, nem fazer dos galos o despertador das metrópoles. uma rua de escamas espera uma cor cair do céu para alimentar sua história. pessoas fardadas borram o vento que passeia. o som de um pandeiro modela as curvas dos pedestres: um inseto faz-se broche na manhã de nossos peitos.



em Insólito 
Fortaleza: Editora Corsário, 2011

ANOTAÇÕES SOBRE A CIDADE ALHEIA




os telhados falam do que não conhecemos, eles falam a língua dos musgos, da tinta seca, das telhas velhas: pegadas-perdidas-de-elefante. as paredes se escoram na flacidez do tempo, preguiçosas e pacientes, acordadas pelo som coletivo das matracas e o movimento das ancas dos cazumbás. a obesidade da cidade é um fato; suas estrias vazam – e nelas andamos. pequenas estações em cada fiapo de cimento ou planta, sombra do que se move e não pode ser segura, presa, pisada. a cavidade lasciva da brisa se faz caminho: sessão de filmes-sonhos no horário das pálpebras fechadas: – não quero que os galos me avisem que está amanhecendo.



em Insólito 
Fortaleza: Editora Corsário, 2011

Demetrios Galvão - síntese biográfica




Demetrios Galvão é historiador e poeta. Publicou os livros Cavalo de Tróia (2001), Fractais Semióticos (FUNDAC/PI, 2005), Insólito (ed. Corsário, 2011) e o cd Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico (2005). Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi dos editores da AO-Revista. Tem poemas publicados em diversos portais e revistas: Cronópios, Corsário, Germina, Mallarmargens, Blecaute, Diversos Afins, dentre outras. Atualmente edita a revista Acrobata. e-mail: demetrios.galvao@yahoo.com.br

Duas perguntas para o Menezes y Morais, por Rodrigo M Leite




Rodrigo M Leite: O que foi o movimento "Viver Teresina" que aconteceu na década de 70 em Teresina, Piauí?

Menezes y Morais: O Movimento Viver Teresina foi uma tentativa de chamar atenção dos artistas em geral, especialmente dos poetas, para que incluíssem em sua produção a nossa amada "Cidade Verde" como musa ou referência. Uma tentativa de levantar a autoestima da cidade, como você faz no "A Musa Esquecida". Eu lancei a ideia e logo depois migrei do Estado, e, retornando em visita um ano depois, fiquei tão feliz, porque o poeta William Melo Soares dera continuidade à campanha, lançando um livro de poesia com a informação "da coleção Viver Teresina". E vi duas pichações em muros do centro da cidade "VIVER TERESINA". Achei o maior barato.


Rodrigo M Leite: Li aquela sua entrevista feita por Wilmar Silva, do portal Germinaliteratura. Nela você comenta que veio de Altos para Teresina e que por volta dos 18 anos a sua poesia "ganhou a dimensão do real". Então, com 18 anos em 1969/70, quais lugares você frequentava em Teresina? 

Menezes y Morais: A minha poesia mudou por dois motivos: primeiro, mostrei grande parte para uma professora, ela disse que gostou muito e comentou: "Mas você, tão novo, tem tanta experiência...". Eu rasguei os poemas que ela elogiou, porque eram mentirosos, ficção, eu não tinha vivido nada daquilo, apenas imaginado. E depois, fui convidado para editar o Suplemento de Cultura do jornal O Dia: a experiência diária, cara a cara, com a realidade, consolidou a mudança: só escrevo sobre aquilo que eu vivo. Eu andava na cidade inteira, amava andar a pé (até hoje). Especialmente nos finais de semana. É claro que isto não era possível no horário de pico do sol. E nos finais de semana, era banho de rio e pescaria (de anzol ou linha de mão, pra pegar arraia), no Rio Poti, com amigos, família.



A CIDADE REVISITADA & seus leões, Rodrigo M Leite



três poemas 
à memória do amigo 
wellington trovão



tambores e fumaça
inauguram a dança do fogo

os filhos-do-sol
convidados ao meio-dia
riscam a praça em chamas

banhados de suor
bronzeados com pólvora


neon HOTEL

consertaram as lâmpadas queimadas
tabuleta, não te quero mais l.a. woman
tuas garotas topless vermelhas
teu bilhar solitário
os riscos nos muros danificados
meus beijos adocicados


retorno às causas natais

a cidade revisitada
já abriga os fantasmas dos amigos
seres feito sombras e lembranças
mistos nostálgicos, madrugada mais difícil
a cidade revisitada
ainda habitada pelos mesmos morcegos
os mesmos bares dissolvidos sempre cedo
atalhos apagados, segredos preservados
a cidade revisitada e sua pólvora
os ônibus os mesmos
enfurecidos na noite vermelha
selvagem coração, a cidade revisitada
transitória faixa emoção


Rodrigo M Leite
em A Cidade Revisitada & seus leões
Teresina: 2014

CAFÉ ART BAR, Rodrigo M Leite


da tarde que segue nervosa
homens surgem suados
carregados de preocupações
destinos a esmo
me vê uma antártica gelada
lá fora praça pedro segundo
a claridade destrói o asco
ferrugem que incendeia o portão velho
na entrada de um estacionamento
a urbe urge roncos trôpegos
a tarde é consumida dentro de um café


Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita
Teresina: 2013 (versão atualizada)

5.11.13

ed. silvestre saraiva de siqueira, bar canto alegre, Rodrigo M Leite


não houve canto aquela noite

o rigoroso som que escapava junker box extravagava os ânimos alheios
constelações de estrelas salientes que jorravam em cascos de kaiser quebrados

r ú t i l o s c a c o s s u s p e i t o s

(som agonizando nas alturas, olhares sinuosos no mármore distante, madrugares clamores ferozes)

noite aflora faunadentro
silêncio no afago de pernas no verso das mesas


Zona Sub 
Teresina: 2012
(versão atualizada)

A TABULETA É UM BAIRRO PESADO, Rodrigo M Leite


durante o dia
feéricas ondas de calor
misturadas com areia e saudade
envelhecem acontecimentos presentes
torrão chapado no corisco!
acabaram com teu engarrafante torto balão
teu centro reformaram reto, encruzilhante
porto das miragens litorâneas
que brotam do asfalto meio-dia
avenida barão de gurguéia com br três quatro três
à noite
junto dos gestos precários
homens sem sombras
partes da clandestina escuridão
são destruídos pelos peso das grandes scanias
que rompem para timon
carregadas de sal
adiante zona sub esquina da mapil
garotas esqueléticas formas
comedoras de brasa cuspidoras de fogo!
atiçam corações feridos de aço e sucata
esmagados pelo esquecimento


Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita
Teresina: 2013 (versão atualizada)

PREVISÃO DO TEMPO, Rodrigo M Leite


o morto esboçado no chão com sua moto
não é lembrado no mercado central
onde cresceu e não aparece há anos
o recém nascido evangelina rosa
grita primavera rouca
coro que anoitece os olhos do pai
pétalas de aço enferrujado
rasgam o asfalto frei-serafim meio-dia
quentura dos infernos
ônibus tiram fino das garotas cpi, todas iguais
a cidade respira pulmões encardidos
e o som vibrante de linhas com cerol nos postes mafuá
trilha o cotidiano de almas estendidas em varais


Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita
Teresina: 2013 (versão atualizada)

CENTRO NORTE, Rodrigo M Leite


no puta boteco para os rumos do verdão
o tempo está parado em um relógio sem pilhas
a vida ferrugem do balcão no fim
aos poucos sendo vencida

os velhos não se olham mais nos olhos
nas paredes mulheres desbotadas com garrafas de catuaba guaracy
fazem moças sexo ágil de fora
perderem o sentido

a alma do bar está acesa
em uma lata de sardinha com querosene
o coração dos homens lá dentro
vai sem muita pressa


Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita
Teresina: 2013, versão atualizada

Rodrigo M Leite - síntese biográfica



Rodrigo M Leite nasceu na zona sub de Teresina - Piauí em mil novecentos e oitenta e nove. É formado em Letras - Português. Edita o blogue antológico Musa Esquecida
Desde dois mil e doze edita livros independentes e fanzines com seus poemas, entre eles: 
Tem poemas publicados em jornais, revistas e portais. 
Contato: rodrigoemeleite@gmail.com