2.12.11

FERRÉ, José Pereira Bezerra


Duas horas da madrugada dum domingo. No Morro do Querosene a movimentação diminui: as portas dos quartos das Putas, fecham-se e não mais se abrem, mas ainda ouve-se sons de copos que se confundem com gritos histéricos e exaltações de bêbados. Defronte a um cabaré, Ferré, homem alto e magro, trabalhador braçal, cambaleia ao ritmo do peso do próprio corpo. No dia anterior, da construção rumou aos botecos - encher a cara de cachaça - deixando a mulher e os quatro filhos dormindo sem jantar. Quando chegasse em casa tinha certeza da briga que a mulher devia estar aprontando, a exemplo de ocasiões anteriores "e com muita razão". Maria não se conformava com a atitude irresponsável do marido, e não raro trocavam tapas e pontapés sob os olhares lacrimosos das crianças amedrontadas. Ferré, não obstante a embriaguez tolher-lhe o cérebro, quer dormir com a família. Já está sem dinheiro, e a vontade é traída pela fraqueza do corpo. Rodopia, não sai do lugar. A cabeça doí-lhe e um mal-estar no estômago aflora. Acerca-se da calçada quase de quatro, senta-se com dificuldade. Minutos após está estirado em decúbito dorsal, dormitando, com as pernas afastadas em da outra, a camisa aberta, suada e suja de vômito. Adormece. Ao amanhecer, acorda atordoado com o sol ferindo-lhe os olhos. Moroso, senta-se e se põe a pensar na sua condição de pobre, bêbado e de pessoa. Não vê diferença. Senta-se envergonhado e num assomo de emoção, chora convulsiva e covardemente. Sai cambaleante, arrasado. Não deslumbra outras formas de desabafar o desespero, a não ser bebendo cachaça e/ou brigando com a mulher. E ainda existem pessoas que acham a situação de Ferré e sua família muito normal e até necessária. No caminho muitos vêem-no e dizem prosa: "a cachaça te mata", "a cachaça ainda mata o diabo". Ferré não responde, segue em frente, mas um palavrão contido às pressas escapa numa cusparada liguenta, (...). Baixa a cabeça, cerra as pálpebras e evita o pior, humilhado.


José Pereira Bezerra
em O Sono da Madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976