29.11.11

O OURO DE TERESINA, Claufe Rodrigues


A primeira vez que estive em Teresina
Vi que seu destino não é ser uma Constantinopla
Com seus exércitos de Nova Roma destruindo os vizinhos
Cidade-Máquina, Cidade-Monstro, Cidade-Moeda, só morte e poder.

Teresina também não seria uma Alexandria
Capital cultural intelectual e artística do mundo helênico
Com as imponências da corte a impor-lhe a sorte.
Tampouco Teresina se compara às potências industriais do norte.

Não,
Teresina é feita de chão, de gente, de águas, de barro, de árvores, de nuvens,
Até mesmo dos mosquitos que atacam na beira do rio no fim da tarde.
Teresina tem um Tê de Tetê
Um rê de Regina
Um si de sina
Um na de nadar não para o mar, mas para a fonte.
Ali encontra seu horizonte,
Sua mina de ouro, seu tesouro:
A poesia.


Claufe Rodrigues 
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

28.11.11

TERESINA, Cristino Couto Castelo Branco


Terra feliz e boa onde nasci chorando,
Onde vi o sol, os céus, as árvores, o mundo...
Onde vi o grande amor em mim desabrochando,
Amor do bem, da luz, do mistério profundo...

Terra feliz e boa onde de quando em quando
Rebrilha no zênite o espírito fecundo
Dos talentos de escol, que surgem quase em bando
Nesta zona de sol, que muito quero, a fundo.

Teresina gentil de ruas alinhadas,
Tens n'alma a placidez das loiras madrugadas,
A beleza, a frescura e o riso das mulheres.

És o trecho melhor da pátria brasileira,
Chapada de trovões, que serás a primeira
Habitação de Deus, dos homens, se o quiseres!


Cristino Couto Castelo Branco
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

27.11.11

IMAGENS SOLTAS, José Ribamar Garcia


O pneu saltitando no paralelepípedo. O menino sem camisa, de calção e descalço, empurrava-o com um pedaço de tábua.
     
O céu girando, girando. A bicicleta substitui o pneu que, por sua vez, sucedeu o velocípede. A Gulliver vermelha, cuidada, brilhava com duas flâmulas do Fluminense dependuradas no guidom. Entrava na Rua Firmino Pires, dobrava à esquerda, na Estrela, caía à direita, na Rui Barbosa, depois à esquerda, na Lizandro Nogueira e, finalmente, na Coelho Neto. A estrela, em alto relevo, na fachada da casa do Monsenhor Chaves. O borracheiro que várias vezes remendara a câmara de ar da bicicleta.
     
O céu girando, girando. A ponte do Mafuá. A linha do trem sobre a qual se colocavam cacos de vidro para que o trem os transformasse em pó, a fim de ser utilizado, como cerol, na linha do papagaio. O Augusto Ferro, reduto dos boêmios suburbanos.

O Cemitério São José guardando lembranças, saudades. Dia de Finados, aquela romaria toda. Os vendedores gritando:

- Olha as velas Três Coroas!

- Olha as flores!

O matadouro, onde se adquiriam, à tarde, fígado, língua, coração, miúdos fresquinhos. O boi sendo arrastado por dois ou três homens, a entrar no salão, ensanguentado. O animal urrava, relutava, esperneava, pressentindo o fim. Com sacrifício, ele era amarrado ao mourão. A faca curta, fina e afiada entrava-lhe na nuca. E a queda brusca. Mais outro a adentrar e a cena se repetia.

O Poti Velho escondido, abandonado, sempre preterido, desde os tempos do Conselheiro Saraiva. Ali a gente caçava passarinho e preá. A mania do Milton Rodrigues de comprar canários, fuçando a periferia da cidade na sua motocicleta barulhenta, que o motor custava a pegar, ora pela bateria, ora por defeito mesmo.

A usina elétrica na beira do rio, fornecedora de água e luz, que funcionava na base da lenha. E as caldeiras queimando madeira, trazida em caminhões das matas maranhenses, já bem devastadas.

A Socopo do outro lado do Poti. Estância mineral com o clube social enfiando no mato. A cidade já marchava para aquelas bandas.

O céu girando, girando. A pescaria debaixo da ponte. A brisa soprava e a canoa deslizava, vagarosamente, sobre as águas do Parnaíba, puxando a rede ou o arrastão. o peixe era assado e devorado ali mesmo, na coroa do lado maranhense, enquanto se ouvia o baque das mangas, caindo no mangueiral que se estendia ao longo do rio.


em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

26.11.11

NOSSO RIO, Hardi Filho


O rio corre calmo e permanece
em nós úmida música, lembrança.
O nosso rio ao sol, ao luar, parece,
às vezes, lerdo, à proporção que avança.

O lixo posto em suas margens desce,
escorre e em grande parte se remansa,
pára em bolsões de ciscos e apodrece
à vista da social intemperança.

Assoreado, o nosso rio empanca
aqui e ali, e quase andando, manca,
e raso e lento obriga-se a desvios.

Apesar disso os peixes, água arriba
e abaixo, abundam no meu Parnaíba,
que é o mais lindo e o melhor dos rios!


Hardi Filho
em Tempo Nuvem 
Teresina, 2004

23.11.11

UM ÍNDIO, Paulo Tabatinga


Um índio perdido
Na Frei Serafim
De óculos ray ban
E de calça jeans

Um índio tapuia
Quem sabe, Poti
Um índio perdido
Na margem da margem
Da Frei Serafim


20.11.11

O ENGRAXATE SILVA, José Pereira Bezerra


Manhã calorenta e ensolarada de dezembro. Silva, engraxate como tantos outros, sentado no banquinho em frente a cadeira de trabalho, na Praça Pedro II, observa detidamente os pés dos transeuntes. Não ligam, passam apressados, indiferentes. O semblante pálido e marcado de Silva está carregado de preocupação e revolta. A incerta espera de clientes fá-lo perder-se em pensamentos inúteis, mas inevitáveis. A manhã já vai alta. Dez horas. E ele ainda não conseguiu o dinheiro da boia. Mediativo, vê os dois filhos magros, pálidos e barrigudos. "Quero cumê, mãe, quero cumê, pai tô cum fome". A certeza da briga da mulher o atordoa. "Tu anda é dando dinheiro pra rapariga". Exasperado, baixa a cabeça, cerra as pálpebras num lamento mudo, angustioso. Não sabe mais a quem implorar, em quem ter fé. Até a macumba o desiludiu. Silva deduz em sua mente turva e frágil que nasceu pra sofrer. Uma passividade quase mórbida o invade, tirando-lhe a esperança de um dia melhorar de vida. Muitos desfilam sob o olhar sensível da miséria. Não sabem? Uns com mãos vazias, outros com braços cheios de embrulhos. "Presente de natal". Silva, vestindo a mesma roupa desbotada e rota todo dia, permanece sentado, olhando os pés de cada dia. Reconhece que sua roupa está imprestável, porém se conforma, contrito. "Não mudo tão cedo, não tenho com quê". De chofre, lembra-se do diálogo que teve com a mulher:

- "Mulher, queria que um de nossos filhos fosse doutor?"
- "Mas como, homem, se não pode nem estudar?"
- "Sei que falta material, roupa e outras coisas, mas..."
- "Além do mais, são burro, custa aprender".
- "Talvez seja a boia, é fraca demais..."
- "Por que tu fica aí alimentando ilusão?"
- "Sei lá, a vida é tão dura. Não custa sonhar".
- "Besta, vai trabalhar!"
       
Antes de ir para casa, num lampejo de sorte, Silva consegue dois clientes. O último é um velho pequeno-burguês conhecido. Com a boca murcha, desdentada, murmura a cantilena de costume:

- Faça um abatimento que sou freguês.
- Sim senhor, patrão.
- Bem caprichado!
- Hum, hum! "Miserável".

Meio dia. Aliviado, Silva monta na velha bicicleta preta e sai deslizando no asfalto. O calor, o suor e a fome fazem-no um sub-homem, vivendo uma subvida crônica, absurda. Os músculos contraem-se entorpecidos. Imagens varrem-lhe o cérebro numa intensidade cega, envolvente. Ato instintivo, range os dentes, o suor fere-lhe os olhos, sente-se fazer parte da própria bicicleta. O trânsito é intenso. Para os cidadãos contribuintes, Silva é apenas um ciclista irreverente atrapalhando os veículos. Para o poeta: "o símbolo do sofrimento humano brigando com o asfalto".


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976

18.11.11

A CIDADE DO POETA, Paulo Veras


Era uma vez um poeta que construiu uma cidade toda de poemas. As ruas foram traçadas em versos livres. Eram largas e cheias de sombra. As casas foram feitas de sonetos, enfileiradas quatro a quatro, três a três. Todas muito bonitas. A igreja erguera-se numa longa ode. Os edifícios, ele os construiu com alexandrinos, majestosos, imponentes. Por fim, tomou um rondó e fez para si uma casinha muito acolhedora no alto do Parnaso.


Paulo Veras
em Poemágico, a nova alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

15.11.11

TERESINA, Mônica Montone


Teresina é uma menina vestida de céu
Que guarda nuvens nos seus olhos de água

É um fio de horizonte que se desprendeu dos cabelos do sol
É um sorriso manso, manchado de cajuína
É a vontade dos pés descalços
De desmaiar sobre o asfalto em chamas

Teresina é uma dama vistosa
Repleta de coroas e anéis
É uma tina de barro lambuzada de paçoca
A coceira de muriçoca
O riso largo dos que nasceram perto d'água

Teresina é o vaso queimado no fundo do quintal
O cheiro de palavra lavada no varal das sestas
É a fresta onde o acaso se traduz

Teresina não é rua, nem rio
Não é esquina, nem casa
Não é um cata-vento, nem peixe
Não é um cão sarnento ou cadela vira-lata

Teresina é uma menina de saia rodada
Que gira gentileza
E desperta para o crescimento

É uma cidade menina
Que brinca nas tranças do tempo


Mônica Montone
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

13.11.11

VIVER EM TERESINA, Marleide Lins

ao poeta Paulo Machado

Férias de galos
bem-te-vis e pardais acordam a cidade
- mais um dia de trabalho -

Fim da jornada
ao assédio da artificial claridade
o sol se esvai com as buzinas dos carros

Frase da noite velada
- (há um poema que rói o tédio) -
e o único grilo é a labuta da rima

mesmo pobre
viver em Teresina
é sina nobre


Marleide Lins
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

12.11.11

O CAMINHO DE ANA, José Pereira Bezerra



Ana, morena, sem pudor, rosto pálido, lábios queimados, horizonte perdido. Vive uma subvida humilhante e desregrada arrastando dois filhos órfãos e pálidos: o protótipo de milhões de homens subnutridos e marginalizados. O sonho cor-de-rosa acabou ao cair na vida de prostituta. Antes, há anos, era tudo muito simples. Vivia com a família numa favela. Não perdia uma novela, não tinha outro divertimento. A cada dia envolviam-na valores burgueses que nada tinham a ver com a condição de vida que levava. Inconscientemente, Ana queria seguir uma vida romanceada e atriz de novela. Não era tudo tão romântico e lindo? A cegueira obscurecia o real horizonte na sua mente fraca, tirando-lhe toda perspectiva de cura. As festas do bairro se sucediam e ela perdia-se nos embalos frenéticos de todo fim-de-semana. Ir à escola era uma diversão a mais, Ana não levava a sério. O capítulo das novelas e o namorado da esquina tomavam-lhe todo o pensamento. Irresistíveis. E assim Ana matava o tempo que a consumia inexoravelmente num ambiente poluído de fraquezas. Um trágico dia - sábado à noite - Ana esperava o ônibus numa parada, quando passou um boy dirigindo um carro e cinicamente ofereceu-se pra levá-la. Resistiu por minutos, vacilante, porém algo mais forte empurrou-a ao veículo do boy desconhecido. "É tão normal, ora bolas, até em novelas das sete se vê isso". Tentava convencer-se da atitude que acabava de tomar. No dia seguinte, quando voltou a si, Ana, morena, simpática, fornida e despudorada, estava caída num terreno baldio da periferia, muito longe de casa. Atordoada, deu uma vistoria no vestido amarelo e vislumbrou manchas de sangue. Após recobrar totalmente os sentidos, e para o seu ódio inútil, achava-se estuprada, com o corpo azunhado e cheio de manchas roxas. Não se lembrava de nada. Arrependida, Ana chorou desesperada e convulsivamente, contraindo o rosto com as mãos. Não queria acreditar. Na sua nova condição de objeto, sentia-se perdida. Ao chegar em casa, os pais sentindo-se ofendidos, puseram-na pra rua. Foi assim que Ana, virgem morena e fornida, tornou-se puta. O sangue virgem de Ana havia maculado o olhar pudico dos homens. Agora a madame de cabaré da Paissandu tinha uma puta boa e simpática para explorar por qualquer vintém. Ana, com o passar do tempo, tornou-se produto barato (seguindo a lei da oferta e da procura) mas de alto custo pra sua própria existência. O caminho era falso, e Ana ainda continua seguindo uma vida errante de fim previsível e trágico. E os órfãos?


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976
Desenho de Evando Vieira, originalmente publicado no livro

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

9.11.11

TERESINA, João Ferry


Do meu bom Piauí, a linda Teresina,
Tem foros de princesa e tem condões de fada.
Cidade nova e moça em forma de menina,
Botão que desabrocha aos beijos da alvorada.

De tanto admirá-la a minha sorte ou sina,
De zelos possuída ardente e apaixonada,
Supõe que o seu conjunto é uma mulher divina,
E em vez de uma cidade, é a minha namorada.

E disto convencido, os sonhos cor-de -rosa,
Dão força ao pensamento e aos loucos devaneios,
Que fazem da minhalma a imagem mais ditosa.

E lembra o Parnaíba, o rio de águas mansas,
Que a cidade verde, em frêmitos e anseios,
Sofralda a fímbria em flor das minhas esperanças.


João Ferry
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)  
Teresina, 2006

8.11.11

João Ferry - síntese biográfica, por Assis Brasil


"A poesia de João Ferry tem duas fases. A do parnasianismo 
multiforme e a da compreensão e assimilação dos novos rumos 
da poesia, procurando libertar-se dos processos matemáticos 
da métrica e da forma". Herculano Moraes


Nasceu João Francisco Ferry em Valença do Piauí, no dia 16 de abril de 1895, onde estudou as primeiras letras com seu pai, o professor José Francisco Ferreira da Silva, no Colégio São José. Com apenas instrução primária, João Ferry parte logo para o trabalho no comércio aos 12 anos de idade. Com a experiência no setor, em breve seria guarda-livros em importantes firmas comerciais piauienses, como a Agência de Rossbach Brasil Companhy, Joaquim Luz & Cia. e Ney Ferraz & Cia., de Teresina.

Enquanto prepara seu livro de versos, Princípios, que será publicado, de parceria com Luís da Paixão Oliveira, em 1914, João Ferry faz uma proveitosa incursão pelo interior de seu Estado, tendo trabalhado em Paraíso (hoje Miguel Leão), Pimenteira, São Pedro do Piauí (como vereador) e nos últimos dias de vida na prefeitura de São Miguel do Tapuio.

Interessando-se também pelo teatro e pelo jornalismo, fundou em sua cidade natal O Lépido, jornal de crítica literária, sendo um dos lançadores do jornal Cidade de Floriano, considerado por Fenelon Castelo Branco um dos melhores da imprensa nacional. Por outro lado, João Ferry teve o seu momento de glória no teatro, quando suas peças era encenadas em todo o Estado e representam de fato os primórdios do gênero no Piauí.

Poesia simples, sem rebuscamentos das escolas em voga, embora a paga do tributo da rima, João Ferry desenvolve também uma espécie de ironia diante dos problemas dos problemas da existência, com a compreensão dos simples e dos ingênuos que tanto marcaram a poesia popular de Hermes Vieira, Hermínio Castelo Brando e mesmo Ovídio Saraiva. Gostava de juntar prosa e versos nos seus livros, com é o caso de Em busca de luz, de 1922, que traz a comédia Quem tudo quer tudo perde, já encenada em quase todos os municípios do Estado do Piauí.

Patrono da Cadeira 38 da Academia Piauiense de Letras e membro da Associação Profissional dos Jornalistas e do Cenáculo Piauiense de Letras, João Ferry morreu em Teresina no dia 22 de setembro de 1962.



em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


7.11.11

TERESINA, Yolanda Bugija de Souza Brito


És linda, cativante e hospitaleira,
Tens a aparência mesmo de rainha
Que até chego a dizer, cidade minha,
Que és o mimo da terra brasileira.

Tua lua é tão linda, oh! Terra minha,
Porquanto igual jamais vi tão fagueira,
E para mim será sempre a primeira,
Porque da fidalguia tens a linha

Os teus filhos se orgulham com razão
De te terem por berço - é natural -
Pois de nenhum magoaste o coração.

Teu rio que é o eterno inspirador
Dos poetas desta terra tropical,
Guarda em seu leito encanto sedutor.


Yolanda Bugija de Souza Brito
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

6.11.11

O PRISIONEIRO DA LIBERDADE, José Pereira Bezerra

"A gratidão é uma forma sutil de desforra;
o beneficiado recobra a sua superioridade
no esforço de ser grato".

João Davidson

Um homem moreno, forte, aparentando quarenta anos... Diziam ser louco... Estava deitado no cais e contemplava as águas do velho Parnaíba que corriam silenciosas.

Desde quando deixara a família, há muitos anos atrás, por querer recobrar a liberdade - admitia ele quando falavam no assunto - sempre dormira no cais e gostava de lá. Era como sua própria casa... A paz que o cimento frio, o céu azul cheio de estrelas, as águas mansas do rio refletindo as luzes dos postes, lhe proporcionavam era realmente confortadora.

Conhecia todas as mulheres que faziam e vendiam comida no mercado velho. Elas, não raro, davam-lhe prato-feito sem nada em troca. Gostavam, sim, gostavam demais dele; ajudava-lhes carregar as compras, fazia compras, dava recados... Era de inteira confiança e muito útil - diziam elas, umas às outras, abanando o fogareiro com uma grande panela em cima; a comida fervia... É verdade também que de vez em quando ele dormia com uma delas.

Ele gostava de passear pelas ruas de Teresina, sentar-se perto das fontes luminosas. Fontes luminosas. Não, não gostava de andar perto delas... Nunca mais se esqueceria do que aconteceu com ele numa tarde calorenta de outubro... Estava suado, com muito calor... Dera uma vontade de lavar o rosto e molhar a cabeça... Estava longe do rio... Caíra na besteira de utilizar a água da fonte luminosa, pra que!? Levou um grande choque elétrico... Quase morreu... Nunca mais se esqueceria disso... Ficaria como exemplo... Fontes luminosas eram como a mulher do diabo, bonita de verdade, mas matava... Concluiu ele perdido em pensamentos.

Sofria de insônia e às vezes passava a noite toda acordado. Aquela noite era uma delas; de vez em quando olhava para uns cestos de tabocas, dispostos em pilha ao seu lado... Às vezes falava sozinho, como quem dialogasse com o rio que ele conhecia melhor que ninguém... Não, não tenho medo do Cabeça de Cuia falava de si para si, como para dar prova de sua coragem - pois já o vi várias vezes... É verdade que o brilho da cuia preta me fez ficar meio arrepiado... Mas foi só a primeira vez... Depois me acostumei... Dizem que ele só se desencanta quando levar sete virgens... Não sou mulher, não tenho medo.

Nesse instante chegou no cais uma mulher correndo. Mulher nova, lábios pintados de vermelho, cabelos compridos, trajando um vestido semilongo vermelho, com um longo corte em cada lado que dava para ver boa parte das coxas pareceu que ela nem sentiu a presença dele, ou talvez pensasse que estivese dormindo... Não estava... Talvez tivesse vindo do cabaré da Paissandu, e fosse tomar banho, está fazendo mesmo muito calor - pensou.

A mulher começou a despir-se descontraidamente com movimentos rápidos e bruscos... Num segundo estava só de calcinha amarela... Tinha os seios ainda bem duros... Veio-lhe uma vontade de agarrá-la, mas se conteve... Já era muito vê-la banhar nua em sua frente e naquela hora... A mulher ficou instantes na beira do rio, pensando e... Tbungo n'água. Ele continuou deitado no cais mas a observava atentamente, tentando ver melhor seu corpo nu e molhado, cintilante pelo reflexo da luz... Porém, minutos depois, ele notou que a mulher não sabia nadar, porque se debatia desordenadamente contra as águas barrentas do rio, como estivesse afogando-se, mas sem dá um grito sequer... Ele levantou-se imediatamente... Pulou n'água do jeito que estava, vestido de calça e camisa e foi de encontro à mulher, que subia e descia... Com gestos rápidos e firmes, agarrou-a por trás e rapidamente guindou-a até o cais. Ela permaneceu calada; já havia bebido uns goles d'água. Ele fitou-lhe o corpo nu... E como levado por um desejo forte aproximou-se dela e começou apalpar-lhe o corpo... Ela não dizia nada, naturalmente gostava - pensou.

- Por que você entrou no rio, se não sabia nadar?

- Queria morrer... Esta vida é um inferno... Madame surrou-me, ameaçou-me, expulsou-me do cabaré... pensava que eu queria o homem dela... ele era quem vinha atrás de mim... Disse chorando baixinho, aos soluços.

- Não chore... não faça isso mais, não - disse puxando-a contra si - o mundo é grande, e sempre existe um lugar pra quem quer viver...

Fizeram amor ali mesmo. Parou de chorar e naquela madrugada não pensou mais em suicídio.


José Pereira Bezerra
em O prisioneiro da liberdade
Teresina, 1978(?)

5.11.11

CHAPADA DO CORISCO, Raul Ney da Silva


De um lado o Parnaíba, o grande rio
Das graças, a correr, veloz indigente;
Do outro o Poti, num doce murmúrio
A soltar seu queixume atroz, pungente.

E Teresina, o berço meu macio,
Onde nasceu todo o meu sonho ardente,
Vejo agora através de um balbucio
De saudade que mata a alma dolente.

Ai... noites de luar... São Benedito!...
A igreja a branquejar sobre a colina,
O meu sonho de amor hoje proscrito!...

Noite que amei, ai! Sonhos de outra idade!...
Como que vos quero, minha Teresina,
No presídio sem fim desta saudade!


Raul Ney da Silva
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.) 
Teresina, 2006

4.11.11

EVOCAÇÕES II, Lucídio Freitas


II

Teresina apagou-se na distância,
Ficou, longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida,
Espera-me, distante, uma outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a minha febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

3.11.11

EVOCAÇÕES III, Lucídio Freitas


III

A saudade me aterra...
E que vontade eu sinto de chorar,
Distante do meu lar,
Vendo outro céu, vendo outro sol, vendo outra gente,
Tão diferente
Da gente boa lá da minha Terra!

A minha Terra... À noite, nas estradas,
Boêmios trovadores,
Desfolhando canções aos pés das namoradas,
Falam dos seus amores,
Enquanto o rir no Azul, nos seus cochins de prata,
As estrelas, em bando,
Ora cantam também e adormecem cantando
Ao som embalador da serenata.

Noite... O Vento, num suave murmúrio,
Passa serenamente,
Uma canoa desce lentamente,
Ao sabor da corrente,
Branda, leve, sutil, sobre as asas do rio.

Alguém passa, de rede a tiracol,
E vai, a noite inteira, trabalhar
Sem queixas e sem mágoas,
Para, ao vir da manhã, ao desabrochar do sol,
Quando as aves despertam pelos ninhos,
À casa regressar,
Trazendo o pão para a mulher e os dois filhinhos
- Áureo pão que arrancou do seio bom das águas...

E lá se vai, depois, de foice e enxada no ombro,
Murmurando do amor as alegres cantigas,
Embriagado da luz que pelos campos erra,
Resoluto e fiel, em doudo desassombro,
Colher do milho verde as douradas espigas,
Longe dos homens maus, da inveja vil, da guerra
Espalhando, feliz, outras novas sementes,
Encorajando os companheiros descontentes...
E à noite ei-lo de novo à procura da choça,
Vibrando de prazer,
De regresso da roça,
Trazendo o pão para os filhinhos e a mulher,
Áureo pão que arrancou do seio bom da Terra...

A vida da cidade embriaga e atordoa...
No campo a vida é assim humanamente boa,
Humanamente simples e perfeita:
É a caça, é a pesca, é o plantio e a colheita,
É a foice e o facão, a espingarda e a canoa.

E que gente modesta é a gente do sertão!
É toda coração,
é bondade infinita, é suprema bondade,
Riso, delicadeza, ingenuidade,
Fé, alegria, amor, perdão,
Afeto e caridade.

Vendo alguém padecer, o sertanejo,
Humildemente pobre,
Todas as mágoas do infeliz encobre
Com a carícia de um beijo.

E agora, estas paisagens relembrando,
Sinto, de quando em quando,
Uma vontade enorme de chorar,
E este desejo mais em mim se aferra,
Vendo outro céu, vendo outro sol, vendo outra gente,
Tão diferente,
Da gente boa lá da minha Terra!...


Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

VIR VER OU VIR, Torquato Neto


a coroa do rio poti em teresina lá no piauí. areia palmeiras de babaçu e
céu e água e muito longe, depois, um caso de amor um casal uns e outros.
procuro para todos os lados - localizo e reconheço , meu chicote na mão e
os outros: a hora da novela o terror da vermelha
o problema sem solução a quadratura do círculo o demônio a águia o núme-
ro do mistério dos elementos os quintais a minha terra é a minha vida!
o faroesteiro da cidade verde
estás doido, então? (sousândrade)
ela me vê e corre, praça joão luís ferreira
esfaqueada num jardim
estudante encontrado morto

ando pelas ruas tudo de repente é novo para mim. a grama. o meu caso de
amor, que persigo, êsses meninos me matam na praça do liceu. conversa com
gilberto gil
e recomeço a
vir ver ou
aqui onde herondina faz o show
na estação da estrada de ferro teresina-são luís um dia de manhã
ali
onde etim é sangrado

TRISTERESINA

uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques
eis tudo. observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto
saio, uma vez feriado de morte e me salvei
o primeiro filme - todos cantam sua terra
também vou cantar a minha

VIAGEM/LINGUA/VIALINGUAGEM

um documento secreto
enquanto a feiticeira não me vê
e eu pareço um louco pela rua e um dia eu encontrei um cara muito legal
que eu me amarrei e nós ficamos muito amigos eu o via o dia inteiro e a
poucos conheci tão bem.

VER

e deu-se que um dia eu o matei, por merecimento.
sou um homem desesperado andando à margem do rio parnaíba.

BOIJARDIM DA NOITE

êste jardim é guardado pelo barão. um comercial da pitu, hommage, à sa-
úde de luiz otávio.
o médioc e o monstro. hospital getúlio vargas. morte no jardim. paulo josé, meu primo, estudante de comunicação em brasília, morre segurando bravamente seu rolling stone da semana

sol a pino e conceição.

VIR
correndo sol a pino pela avenida

T E R E S I N A

zona tórrida musa advir

uma ponta de filme - calças amarelas
quarto número seis sete cidades


Torquato Neto
em Gramma, nº 2
Teresina, 1972

2.11.11

EVOCAÇÕES, Lucídio Freitas


IV


Têm as águas, aqui, estrondosos e estampidos,
Gritos de dor e gritos de agonia,
O mar, quer seja noite ou seja dia,
Fala somente,
Desumanamente,
A linguagem sombria dos gemidos.

O mar feio, disforme,
Simbolizando o mal, o ódio, a vaidade,
Bem se parece
Com a alma sangrenta e informe
E incalma
Desta grande Cidade,
Que desconhece
O amor - rebento original da alma...

O mar me aterroriza
Com seus rancores e ais incompreendidos
Vendo-o, suponho que ele sintetiza
O pranto amargo dos desiludidos,
Os gestos infernais dos oprimidos
Que a sede e fome morrem sobre a terra,
Porque o mar, no seu bojo ermo e profundo,
Encerra
Todos os sofrimentos deste mundo...
Causam-me horror e medo o barulho do mar.

Quando lhe escuto os uivos,
Levantam-se a tremer os meus cabelos ruivos,
Na alma sinto a correr um frio de gelar...

E ainda diz-me o destino, hediondo, a blasfemar,
Que eu tenho de morrer de um naufrágio no mar...

A Minha Terra... Uns doces movimentos,
Preguiçosos, suaves, sonolentos,
Têm as águas da terra em que nasci...
Jamais as vi
Rebentar em furor indômito de guerra,
Em desesperos e estertores...
As águas mansas lá da minha Terra
Só nos falam de pássaros e flores...

O Parnaíba, ao pôr do sol, encanta
A alma e o olhar.
Ele, claro, a descer, divinamente canta,
Rendilhado de esplêndida beleza,
Levando à flor da correnteza,
A boiar; a boiar.
Ramos de flores de reais matizes,
A epopeia de todos os felizes,
O almo esplendor de nossa Natureza...

Desce, e com o olhar o acompanhamos.
Desce, circula se envolvendo aos ramos
E ao nosso olhar se perde...

E, que saudade sente, e que saudades
Leva da noiva que é a Cidade Verde
- A mais linda de todas as cidade...


Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

TERRA QUERIDA, Mário Bento Gonçalves


Minha Terra Natal! Querida Terra,
De um povo bom, trabalhador e honrado!
É um trecho do Brasil, que um poema encerra,
De luar divino e céu todo estrelado.

De vale em vale, assim, de serra em serra,
Brilhando ao sol do Norte, ao sol dourado!
Bendita sejas tu na paz, na guerra,
A glória, no presente e no passado.

Bendita sejas tu, entre dois rios:
Parnaíba e Poti - sublime e pura,
Rica e feliz de carnaubais sombrios!

Bendita sejas tu, ó Teresina!
O amor, quanto mais longe, mais tortura,
Por que a saudade o coração domina...


Mário Bento Gonçalves
em Antologia de Poetas Piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

1.11.11

TERESINA NO PASSADO, Guaipuan Vieira


No final de maio de 1996, retornei a Teresina, integrando a Comissão de Intercâmbio Cultural de Fortaleza, a convite da Academia de Letras Vale do Longá. Ficamos hospedados no Hotel São José, à margem direita do rio Parnaíba, no coração da Verde Capital. Além da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, estavam o diretor desta, o escritor Alberto Santiago Galeno e o poeta Paulo de Tarso. Alberto me pedira para levá-lo ao Mercado Central, pois desejava comprar um chapéu de vaqueiro feito no Piauí. Eram quinze horas de sábado. O silêncio pairava no centro, devido o final de semana. Mesmo sabendo que àquelas horas seria impossível encontrar o mercado aberto, tive que atender o pedido.

Alberto, que caminhava a passos lentos e, cambaleando, estava calado, mas observador. Paulo, que nos acompanhava, admirava os velhos casarões e o rio que solitário descia entrecortado pelas coroas, indagou a Alberto:

- Doutor, o senhor conhecia Teresina?

Ele, sem pensar, duas vezes respondeu:

 - De passagem. Guaipuan não nos conta a sua história.

A responsabilidade pesou-me nos ombros. Calado, como menino repreendido, não sabia por onde começar. As recordações refletiam à mente. Mas uma luz me surgiu dos anos 60. Tive que superar o desafio, e conjugar costumes, tradições e modos de vida de um povo que, embora embriagado pelo vício e prostituição, deixara página de sua história, vez por outra folheada por algum pesquisador.

 - Isso aqui foi a famosa Palha de Arroz. O nome vem das torrefações. Nesse meio funcionou o baixo meretrício, o Q.G. era o cabaré Barrinha, conhecido por “tabaco”, freqüentado pelos “porcos-d’água”, que eram os ajudantes das embarcações.

Paramos um pouco, sob a sombra de oitizeiros, direcionados para o sul, a uma distância de 200 metros. Articulando, mostrei-lhes onde funcionava a usina termelétrica, que fornecera energia para toda a cidade, até a década de 60, substituída por uma caldeira a diesel, vinda de Alagoas, não esquecendo seus ritmados apitos como de uma maria-fumaça, que até as 21 horas servia-nos de relógio, quando num toque de despedida saudava a noite, que paulatinamente ia em busca do novo dia. Nessa época, o rio Parnaíba era navegável. De longe também se ouvia o rugir dos vapores, lanchas e alvarengas vindos do sul do Estado, transportando mercadorias e passageiros, em direção ao Porto, que ficava limitando a Praça da Bandeira, por onde iremos passar.

Recomeçamos a caminhada. Ao cruzarmos a rua Paissandu, fizemos outra parada. Não poderia esquecer de citar que fora o núcleo dos tradicionais cabarés, como “Estrela”, “Fascinação”, “Imperatriz”, “Nove Horas”, “Gerusa”, “Raimundinha”, “Joana de Paiva”, entre outros. Subimos na rua em direção à Praça Pedro II. Na mente conduzia a surpresa que Alberto tanto esperava. Uma outra parada não fazia mal. Afinal, procurava descrever Teresina no passado, mostrando-lhes os pontos que serviram de concentrações desses personagens.

 - Onde estamos? Indagou-me.

 - Olhe, nessa casa comercial, “Rádio Ion”, foi o bar do Zé Cazuza. Às 12 horas de uma sexta-feira de 1948, o tenente Wanderley bebia aqui. Ao perceber a passagem de Zezé-Leão, o chamou. Depois de uma ligeira conversa, lembrou-lhe que em certa ocasião tinha-o prendido. Zezé, calmamente, embora entrecortado do insulto, perguntou-lhe se ia demorar no bar. Ele, ufano de autoridade, respondeu-lhe que sim. Zezé, enfatizou:

 - Voltarei logo.

Em questão de 20 minutos, o lúgubre estúpido, armado com um revólver 38, mudava o ritmo da cidade. A rádio Pioneira, que funcionava na rua Senador Teodoro Pacheco, aqui, próximo, em primeira mão, divulgou o acontecimento em reportagem exemplar de Carlos Said. No dia seguinte, as manchetes dos principais jornais: “ZEZÉ-LEÃO MATA TENENTE WANDERLEY E FOGE".

- Ah, foi assim! Sua fama chegou no Ceará, exclamou Alberto.

Paulo, aproveitando a deixa, nos contou que seu tio-avô, Cel. Domingos Gomes de Freitas, que residia em Tauá CE, tinha um criado que era o responsável pela compra de mantimentos (gêneros alimentícios) da Casa Grande. Segundo seu avô, certa ocasião, o criado, chegando de viagem, já na entrada do município, fez uma ligeira parada numa venda para beber uma pinga. Ao pagar a dose, foi surpreendido pois já estava paga. Ele então perguntou ao dono da venda o nome do desconhecido para agradecer. Esse, ouvindo, respondeu-lhe:

“José de Área Leão
A onça sussuarana
das matas do Piauí".
- E você quem é, caboclo?
Sem bater pestana, que nem um bom improvisador, informou-lhe:

“Eu sou um cachorro preto
da zona do cariri
acuador de onça sussuarana
das matas do Piauí”.
E até logo!!!

Zezé baixou a cabeça, bebeu outra pinga e exclamou: “muito bem!” Um dos seus seguranças indagou-lhe: “Pega o homem, coronel?!

-“Não. Cachorro que acua onça é respeitado".

Continuamos a caminhada. Logo estávamos na Praça Pedro II. Ali, para mim, foi um pesadelo. Não controlava as ideias, que se misturavam com as lembranças, dificultando concatenar o raciocínio, porque a Praça continuava sendo o cordão umbilical dos que edificaram a invejável história da terra.

De um lado, o Centro de Artesanato, guardando consigo lembranças do velho quartel da polícia militar. Do outro, o Cine Rex, solitário, que nem ancião, nem parecia que vencera os seus concorrentes: Cine Guarany, Olímpia, São Luís, Rio Branco, entre outros. Um cartaz lembrava Alfredo Ferreira que foi o fundador do cinema em Teresina, e o primeiro filme exibido, que era norte-americano e falado, tinha como título: “Doce como Mel.”

O Theatro 4 de Setembro, guardião da cultura, silencioso, trazia consigo recordações da luta ferrenha que travou para se desligar do cinema, para ser o que é: palco de espetáculos teatrais. Ao lado, a Galeria das Artes, num oculto quadro, descrevia o saudoso Bar Carnaúba, cercado de artistas e intelectuais. As horas corriam. Alberto, mergulhado no impressionismo, esquecia a compra do chapéu. Paulo não perdia nada da explanação. Anotava, na agenda, os subsídios para a história do município.

Guia turístico, contador de história ou causos. Sei lá quem eu era. Prosseguimos. Seus entusiasmos aumentavam. Embora quisesse parar a narração, não podia. Sempre algo chamava a atenção.

O silêncio recordava-me os tempos idos, quando menino, de calça curta, procurando remédio nas farmácias Santo Antônio, Lili e São Pedro, de Pedro Vasconcelos. Não encontrando, ia direto à farmácia “Coleta’, onde Jaime da ‘botica” fazia a manipulação de medicamentos. Naquele tempo era assim. Com essa reflexão sobre o passado, logo chegamos à Praça Rio Branco. Estava a esmo. Não parecia o logradouro de concentração de poetas populares, da ceguinha Maria Viana, no órgão, interpretando canções bregas; de aposentados driblando a velhice, tentando afeiçoar a nova geração. A brisa fria da tarde os enchia de indagações, estava num árduo ofício, não podia dissolver fatos do folclore teresinense.

-Nesse prédio da Caixa Econômica, funcionou o comércio do Carcamano, à noite tinha uma preta velha vendendo manuê; a fatia do bolo custava um tostão, e media um palmo. Tornou-se admirada pelo pessoal de vida noturna, através dos improvisos de propaganda:

“Chega gente, está na hora
Compre logo o manuê,
Compre mesmo, sem demora.
Manuê da preta velha
Tem segredo de essênça,
Inda mais com bom café
Muda até sua presença”.

Observa-se, de certa forma, que a cultura popular, destacando-se a poesia, nasce da necessidade de sobrevivência dessa gente. A não importância desses fatos contribui veementemente para o anonimato do autor, o que aconteceu com modinhas, adágios e alguns provérbios.

-Com certeza, enalteceu Alberto. Tive que ser breve nas citações, haja vista que algo mais nos aguardava. Estamos na Praça da Bandeira.

Recorda-me o pequeno zoológico, a feira dos pássaros e a do troca-troca. Nessa época chamava-a de bacia, por formar um círculo e ser de baixo relevo. Deu guarida a grandes circos, como Garcia, entre outros. Hoje, as grades que a cercam, nos reflete a ligeira impressão de que é prisioneira, e que nada tem de majestosa! Vê-se silente, concentra suas atenções no Teatro de Arena, palco dos acontecimentos culturais, de ação preservadora das tradições da terra.

Veja “Domingos Fonseca”, do alto, sussurra a poética sem jaça, em louvação aos poetas que versejam “sua poesia”, nos Festivais de Violeiros do Nordeste. Eram 17h30min, os pardais começavam a harmoniosa sinfonia sobre os frondosos oitizeiros, em contemplação a mais um dia que se findava. Apressamos os passos, cruzamos o Mercado Central, logo saímos no desativado Cais do rio Parnaíba. De retorno ao hotel, oportunidade em que falei sobre o Velho Monge, das extintas carrancas e dos banhos aos domingos nas piscosas águas, onde as coroas são atraentes praias, que desfilam preciosas sereias, musas inspiradoras que nos confortam a alma, principalmente quando se tem um bom anzol. Alberto, satisfeito, sorriu. Paulo ficou ansioso para conhecê-las. Seguimos para o hotel, contemplando o pôr do sol, rica beleza natural. Alguns minutos, como se fora beber água, os deixei à vontade. Próximo ao hotel, Alberto exclamou:

-Gostei bastante do passeio e da sua narração. Só me falta o chapéu!


Guaipuan Vieira