25.10.11

A MORTE NA PRAÇA, José Pereira Bezerra


Ilustração: Arnaldo Albuquerque

Domingo à tarde. Não passa das três. O sol intenso cobre parcialmente e incendeia a praça. Em frente ao Cine Rex um aglomerado de pessoas esperam ansiosos o início da sessão vespertina. Dum banco defronte, um homem moreno claro, barba grisalha por fazer emoldurando-lhe o rosto magro e pálido, contempla a movimentação. Faminto, fraco, é envolvido por uma indecisão que o abate. Não sabe se lê o jornal "O DIA", ou se fustigado pelo calor, observa indiferente o formigar de gente. A secura da garganta já denuncia a sede que o ameaça. Não tem dinheiro e a ideia de pedir a alguém o constrange. No dia anterior, por motivo de briga, passou a noite preso na Central de Polícia, e esse fato parece abatê-lo, apesar de não ser a primeira vez. Hoje, pela manhã, perambulou sem rumo nas ruas. Não teve coragem de por os pés em casa, "não tinha cara para isso". Cisma. O ar quente, abafado tira-lhe a paciência, mas não muda de lugar. "Ora porra". Um entorpecimento e suor frio invadem-lhe o corpo. A beira da náusea, o cérebro fraqueja. Range os dentes, procurando forças pra vencer a agonia. A imagem da mulher brigando e dos filhos chorando ferem-lhe a mente de relance. Os segundos passam, a pele perde a cor natural. A custo tenta soerguer a cabeça. Inútil. Tomba sem forças, escangotado. Semi inconsciente, imagens contraditórias e indesejáveis invadem-no. Dir-se-á que estar sendo fulminado por um edema fatal. O jornal foge-lhe as mãos, caindo em frente. Ora contrai o estômago, ora aperta o peito com as mãos crispadas. Num delírio torturante, até sons desconexos e vagos ferem-lhe os ouvidos. As pessoas continuam aglomeradas e ninguém percebe que está morrendo aos poucos. Ninguém socorre, nem vela existe nesse momento crítico de sua existência. Seus valores são colocados em dúvida diante da realidade. Agonizante, ouve gritos, vozes, de conhecidos e até dele mesmo, num alternar martelante e confuso.

- "Você não presta, sem-vergonha!"
- "Estás condenado à morte por ti, covarde, não assumiste a luta".
- "Meu filho, não lhe falei? Você perdeu grande oportunidade e não assumiu a verdadeira postura de homem..."
- "Sou covarde, bem o sei, e meu egoísmo burguês me queima no fogo de minha fraqueza".
- "O seu maior erro foi não ter conseguido enxergar nem sentir o efeito alienante da cegueira..."
- "Vai e te lamente, mas no fundo o erro é da consciência que a sociedade impôs na formação de tua personalidade..."
- "Não vês, idiota, que foste manipulado de forma tão primitiva...?"
- "Eu daria tudo pra viver outra vez. Com certeza não seria mais um pústula..."
- "É tarde!"

Quando o vêem caído, acercam-se do cadáver que acaba de dar o último espasmo. Cada pessoa que se aproxima do círculo, estica mais e mais o pescoço pra melhor presenciar a miséria em sua forma mais simples - a morte. Esboça expressão fácil digna duma das pinturas mais patéticas de Koskoschka: olhos esbugalhados, boca entreaberta mostrando os dentes amarelos e cariados, e um fio de barba descendo num canto da comissura dos lábios. "Ah, que terá acontecido com este homem de Deus?" Sussurra uma velhota gorda, rosário entrelaçado nos dedos, trêmula. Faz-se um pequeno tumulto. Todos querem dizer alguma coisa. Rompante, aproxima-se do cadáver um homem moreno e forte, olhos vermelhos. Recende a cachaça. Brada com voz dominadora:

- Vejam quem é!?

Ato contínuo, um suspense assalta os presentes, que, perplexos, entreolham-se interrogativos.

- É Chico Valete. Que Deus o tenha entre os seus. Já foi por bem dizer rico, possuiu muitas propriedades, mas no jogo perdeu tudo ansiando ficar mais rico. Todos olham-no, atentos. Faz-se um silêncio frio, tumular. E, fazendo um gesto forte de cabeça, gira o corpo, resoluto e sai cabisbaixo, exasperado, como se acabasse de ler a sentença de morte do miserável.


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976
Desenho de Arnaldo Albuquerque, originalmente publicado no livro